São Paulo, segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

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Arte e Estilo

Retratos de um lar familiar e estrangeiro

MICHAEL KIMMELMAN
ENSAIO

BERLIM - Nem toda cultura já é global. A fotógrafa Gisèle Freund em geral causa confusão nos EUA. Entre outras razões, por ter publicado imagens desabonadoras de Evita Perón na revista americana "Life", em 1950, irritando o governo argentino e afetando as relações diplomáticas, o que levou o Departamento de Estado a declará-la "persona non grata". Azar dos EUA.
Freund não era uma grande fotojornalista, mas era uma pioneira talentosa. A partir de 1935, quando André Malraux a arregimentou para documentar o Primeiro Congresso Internacional de Escritores pela Defesa da Cultura, ela produziu memoráveis retratos de, entre outros, Louis Aragon, Vita Sackville-West, Boris Pasternak, Stefan Zweig, Virginia Woolf e James Joyce (os dois últimos em cores, quando o filme colorido ainda era novidade).
Mais de meio século depois, alguns desses retratos podem parecer um pouco datados, mas lá estão Joyce relaxando com o neto em um parque, com a bengala atravessada sobre o peito, qual uma faixa militar; e Malraux, com uma bituca entre os lábios, protegendo-se do vento com a gola do sobretudo levantada. Freund realmente lia o que seus retratados escreviam, frequentava seus círculos, e as suas melhores fotos transmitem uma sensação de intimidade com um mundo perdido entre as duas guerras mundiais.
Nascida em 1908 em Berlim, Freund fugiu da Alemanha em 1933, mas nos últimos anos antes da sua morte, em 2000, ela mereceu algumas exposições e livros na cidade. Agora, é novamente celebrada na capital alemã. Retratos seus ocupam o salão de exposições da Willy Brandt Haus, e o Ephraim-Palais tem algumas fotos menos conhecidas que ela tirou ao fazer rápidas visitas à cidade em 1957 e 62. De certa forma, estas são as mais interessantes.
Freund esperava encontrar os marcos perdidos da sua infância. Em vez disso, descobriu um lugar muito pouco familiar, e suas fotos ficaram abençoadamente longe da melancolia e do moralismo: a rigor, não são arte, mas são honestas e verdadeiras.
O que é leal à experiência do exílio. Ela e o escritor Walter Benjamin haviam ficado amigos em Paris. Escrevendo sobre a sua própria infância em Berlim, Benjamin certa vez notou como a vida no exterior havia tornado clara para ele a iminência de "uma longa e talvez duradoura despedida da cidade natal". "Várias vezes na minha vida interior já experimentei o processo de inoculação como algo salutar", acrescentava. É de certa forma isso que as fotos de Freund sugerem também: sua tentativa de se inocular contra as vicissitudes do tempo por meio da lente da câmera.
Em Frankfurt, ela havia pesquisado as raízes da fotografia, tema que não era levado muito a sério, mas era muito caro a Benjamin. Ele cita Freund em seu "Projeto das Arcadas". "Podemos apenas imaginar o que teria significado para aquela época repentinamente ver diante de si, de forma tão verossímil, as figuras celebradas do palco, das tribunas -em suma, a vida pública", escreveu Freund sobre as primeiras fotografias.
As fotos da Berlim pós-guerra, especialmente em 1957, são uma coisa à parte. Elas mostram Berlim antes da construção do muro. A cidade era tão diferente para ela quanto Berlim é hoje para os que se lembram do muro. Suas fotos documentam os canteiros de obras, as praças bombardeadas e os velhos cortiços com roupas penduradas em varais. Mas há também sua foto do Hansaviertel, um loteamento habitacional do pós-guerra, que representava a Berlim Ocidental moderna e capitalista.
A foto não tem um ponto de fuga. À primeira vista, é quase incoerente. Benjamin escrevera sobre como esperava, pela inoculação, que "a sensação de saudade não ganharia mais domínio sobre o meu espírito do que uma vacina ganha sobre um corpo saudável". E acrescentava: "Busquei limitar seu efeito por meio do entendimento da irrecuperabilidade do passado".
A Berlim do passado era irrecuperável. Seu futuro seria mais estranho que seu passado, e ainda é. Era isso que Hansaviertel representava. As fotos de Freund falavam a esta cidade e à Europa em meados do século e à própria condição dela.
Não são realmente uma coisa à parte. São o autorretrato dela.


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