São Paulo, segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Como o cinema fez um presidente

MANOHLA DARGIS E A.O. SCOTT
ENSAIO

Barack Obama demonstrou, para surpresa de muitos americanos e de grande parte do mundo, que os EUA estavam preparados para ter um negro como presidente. É claro, pois já tínhamos visto muitos presidentes negros na América virtual do cinema e da televisão.
O poder de James Earl Jones em "O Presidente Negro", Morgan Freeman em "Impacto Profundo", Chris Rock em "Um Pobretão na Casa Branca" e Dennis Haysbert no seriado "24 horas" nos ajudaram a imaginar o feito transformador de Obama antes que ele acontecesse. De uma maneira modesta, também o aceleraram.
Que ninguém se engane: a histórica recusa de Hollywood em aceitar artistas negros e sua insistência em caricaturas e estereótipos radicais ainda perduram. Mas nos últimos 50 anos -ou, para ser exato, nos 47 anos desde que Obama nasceu- os negros do cinema passaram do gueto à sala de reuniões, dos papéis coadjuvantes de serviçais para o rarefeito primeiro escalão de Hollywood.
Cineastas tão díspares quanto Charles Burnett, Spike Lee e John Singleton ajudaram a rasgar o véu que tapava a vida dos negros, assim como os artistas que enfrentaram e transcenderam os estereótipos de selvageria e servilismo para criar imagens novas da vida negra, mais ricas e verdadeiras.
Nesse caminho formou-se o arquétipo do herói negro masculino que surge das margens para salvar os demais -como Will Smith em "Independence Day" e "Eu Sou a Lenda".
A moderna história afro-americana tem sido, entre outras coisas, uma série de "o primeiro...", e o primeiro astro negro do cinema -o primeiro a receber um Oscar de melhor ator e a ver seu nome acima do título nos cartazes dos filmes- foi Sidney Poitier. Durante grande parte da década de 1960, Poitier tornou-se uma figura simbólica não só para os afrodescendentes, mas para os EUA como um todo: o Negro Comum.
Seus papéis estavam voltados para as questões espinhosas da autoridade masculina afrodescendente. Como um homem negro impõe sua liderança em uma sociedade que espera sua subserviência e quase sempre está disposta a exigi-la? Como ele chega a uma acomodação com o mundo branco sem sacrificar sua integridade e autoestima? Confrontando esses desafios em filmes como "No Calor da Noite" e "Adivinhe Quem Vem para Jantar", Poitier se tornou um embaixador junto aos EUA brancos e um emblema benigno do "black power".
Em 1971, a produção independente "Sweet Sweetback's Baadasssss Song", de Melvin Van Peebles, ajudou a desencadear um novo tipo de representação do homem afrodescendente. Este sucesso barato e fragmentário, junto com seu herói vagante e carnal, oferecia uma alternativa brincalhona ao tipo de negro esterilizado que Poitier interpretava.
Só que o negro hipersexualizado também se tornou alvo da exploração branca. Desde então, os personagens masculinos negros costumam ser divididos por um eixo de virtude e pecado, forçados a interpretar o tira ou o bandido, o santo ou o sociopata. Parece revelador que em 2002 Denzel Washington tenha se tornado o segundo negro a receber o Oscar de melhor ator por interpretar um policial corrupto em "Dia de Treinamento". Washington trouxe para a violência do seu personagem uma nauseante carga erótica, aparentemente destinada a apagar qualquer traço de seu perfil estoico e heroico, parecido com o de Poitier, vindo de filmes como "Filadélfia" e "Duelo de Titãs".
A violência pode ser igualmente excitante quando é estritamente verbal. Richard Pryor esteve entre os primeiros comediantes a descobrirem que a plateia branca pode ser conquistada ao ser provocada e insultada.
Em 1984, Bill Cosby podia já ser uma figura paternal para artistas negros mais jovens, mas sua carreira como "papai dos EUA" apenas acabava de começar, com a estreia do seriado "The Cosby Show". A novidade daquela série, ao mesmo tempo revolucionária e profundamente conservadora, residia na sua insistência, semana após semana, na tese de que ser negro é uma outra forma de ser normal.
A composição tradicional da família Huxtable, tendo o pai como um chefe benevolente e um pouco atrapalhado, era parte da estratégia de dissociar a negritude de uma patologia social.
"The Cosby Show" não negava a existência de problemas sérios dos negros nos EUA -nem mesmo o problema dos pais ausentes-, mas a presença de Cliff Huxtable, na casa dele e na nossa, sugeria que os problemas não eram intratáveis.
Salvador, conselheiro, patriarca, oráculo, vingador, modelo -comparado com tudo isso, ser presidente parece um trabalho bastante simples.


Texto Anterior: Arte e Estilo: Retratos de um lar familiar e estrangeiro
Próximo Texto: Desvendando a trilha sonora de "Snoopy"
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.