São Paulo, segunda-feira, 27 de abril de 2009

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Ela ainda dança em seus sonhos


A bailarina que era um prodígio na China hoje luta para se recuperar


Por DAVID BARBOZA

PEQUIM - Em agosto passado, uma bailarina de 26 anos chamada Liu Yan deveria fazer a apresentação de sua vida na cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim.
Considerada a principal bailarina clássica da China, ela havia preparado uma peça de seis minutos chamada Estrada da Seda, para comemorar a rica herança cultural que acompanha uma das primeiras rotas comerciais do país oriental.
No entanto, duas semanas antes da apresentação, durante um ensaio no Estádio Nacional em Pequim, ela saltou em direção a um palco móvel que funcionou mal, fazendo-a cair em um poço profundo e se chocar com uma barra de ferro. Inconsciente, ela foi levada a um hospital militar, onde os médicos realizaram uma cirurgia de emergência que durou seis horas.
Não muito depois disso, sua família soube da terrível notícia: Liu havia sofrido uma lesão grave nas vértebras e estava paralisada da cintura para baixo. Era improvável que voltasse a andar ou dançar. "A vida não é tão doce ou bela depois de uma lesão", ela disse chorosa durante uma recente entrevista. "Você enfrenta muitos dilemas e muita dor."
Estranhamente, a história de Liu é pouco conhecida dentro da China, porque em agosto, temendo que a notícia perturbasse as comemorações da Olimpíada, o Comitê Olímpico de Pequim pediu que testemunhas e parentes não falassem sobre o acidente. Ainda hoje, a mídia noticiosa controlada pelo Estado chinês não teve permissão para contar tudo o que aconteceu.
No entanto, algumas semanas atrás, Zhang Yimou, aclamado cineasta chinês e diretor da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, homenageou Liu em um jantar de premiação em Pequim e a proclamou uma heroína. Liu sorriu, enxugou uma lágrima e disse à plateia: "Não fiquem tristes demais por mim. Serei forte".
Na maior parte dos dias ela faz fisioterapia, exercitando seu torso inferior com alongamentos e esperando que a parte inferior de seu corpo de algum modo volte à vida. Mas os médicos dizem que as chances de sucesso são pequenas. Os nervos que comandam suas vértebras foram gravemente danificados.
O trajeto de Liu até os palcos começou na região autônoma da Mongólia Interior, no norte da China, onde sua mãe é médica, e seu pai, juiz. Em uma entrevista em abril de 2008, meses antes de seu acidente, seus pais falaram sobre a singular paixão da filha: a dança clássica chinesa, que remonta a centenas de anos e foi influenciada pelas artes marciais, o tai-chi e a Ópera de Pequim.
"Ela era louca por dança, até nos dias de chuva", disse seu pai, Kiu Xueming, enquanto tomava chá em uma casa de chá na capital chinesa. "Eu a levava para a aula na garupa da motocicleta, e a professora ficava chocada ao nos ver [sob a chuva]."
Aos dez anos, ele lembrou, a menina era boa o suficiente para ser admitida na escola média afiliada à prestigiosa Academia de Dança de Pequim. Ela foi matriculada na academia aos 18 anos. Aos 23 recebeu o principal prêmio de dança do país, o Prêmio do Lótus, por uma dança original mostrando a vida de uma menina pobre que sofre a perda de seu verdadeiro amor durante a última dinastia Qing.
Zhang Jigang, vice-diretor da cerimônia de abertura olímpica, ficou tão impressionado com a capacidade de Liu que forçou os organizadores a colocá-la na noite de abertura da Olimpíada de Pequim. "Eu pensei: ela é a adequada para o momento; é a pessoa certa para dançar na frente do mundo inteiro", ele disse em uma entrevista por telefone recentemente.
Então, em uma noite no final de julho, com cerca de 10 mil pessoas assistindo no estádio a um ensaio do espetáculo de quatro horas, ela caiu da plataforma em direção à escuridão. Ela até hoje não conseguiu compreender o que deu errado. "Sou a dançarina mais cautelosa", disse depois. "Nunca havia me machucado antes."
Quando rumores de sua queda vazaram na internet, dias depois da abertura da competição, a mídia estatal reagiu com uma pequena reportagem on-line, dizendo que ela havia se ferido. A publicação foi acompanhada de uma foto de Liu em uma cama de hospital, sorrindo e acenando para a câmera.
Na imprensa chinesa ela mostra um rosto feliz e diz que está esperançosa sobre o futuro. No entanto, em uma série de entrevistas concedidas nos últimos oito meses, a dançarina admitiu se sentir vazia e até amarga. Ela disse que não poderia suportar a ver a cerimônia de abertura na televisão em agosto, quando uma nova bailarina a substituiu.
Mais recentemente, Liu vem tentando mostrar um semblante feliz. Ela não expressou amargura em relação ao governo ou ao Comitê Olímpico. Entrou para o Partido Comunista e começou a fazer aparições públicas. Atualmente ela fala em estudar para ser apresentadora de televisão.
Hoje, sua luta para esquecer o passado é evidente. "De uma bailarina a uma pessoa paralisada é uma realidade amarga", ela disse certa vez enquanto estava no hospital. "Não consigo suportar. Antes eu conseguia levantar minhas pernas até minha cabeça. Hoje minhas pernas estão mortas sobre a cama."


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