São Paulo, segunda-feira, 27 de setembro de 2010

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Enquanto a Europa observa, orgulho supera culpa na Alemanha


Desigualdade ajuda a reduzir generosidade alemã

Por NICHOLAS KULISH

BERLIM - Vinte anos depois da reunificação, a Alemanha chegou a um acordo consigo mesma de uma maneira que a geração do pós-guerra proclamou que jamais seria possível. A mudança fica evidente nas ondas aéreas, onde as canções alemãs fazem um retorno contra o predomínio do pop americano. Livros campeões de vendas tratam de Goethe e Schiller ou incentivam os leitores a redescobrir a Alemanha a pé, de carro e de trem, dos Alpes da Baviera aos antigos portos hanseáticos no mar Báltico.
Apesar dos temores da crescente desigualdade de renda, o motor econômico da Alemanha está ronronando, e o desemprego caiu de modo significativo na antiga Alemanha Oriental.
E a chanceler Angela Merkel liderou um bloco de países que evitou os apelos do presidente Obama por estímulos para combater a crise econômica, certos de que o mundo deveria seguir o exemplo de austeridade alemão.
O orgulho da Alemanha não morreu depois de sua derrota na Segunda Guerra Mundial. Ele apenas caiu em um sono profundo. O país, hoje, está novamente desperto, pronto para comemorar sua engenhosidade econômica, seus tesouros culturais e os trechos imaculados de sua história.
Enquanto a Alemanha embarca nessa viagem de autodescoberta, a pergunta é se ela abandonará um projeto europeu que, em grande medida, foi construído sobre a culpa do país no pós-guerra e sobre sua própria riqueza.
"Talvez seja novamente a nossa hora", disse Catherine Mendle, 25, uma assistente social escolar que passeava em uma tarde recente pelos terrenos e salões do prédio de vidro e concreto da Chancelaria.
"Nós temos essa extrema síndrome de ajudar, de tentar fazer o mundo nos amar de novo, e está completamente ultrapassada", disse Mendle. A Alemanha, segundo ela, foi reduzida a simples estereótipos -a Oktoberfest, fábricas de carros, o Holocausto. Suas ricas tradições na música e na literatura, a constante ênfase para o bem-estar social e um forte compromisso com o meio ambiente merecem mais respeito no exterior e no país, disse Mendle.
"Hoje existe na Alemanha um desejo de explorar nossa contribuição para a cultura mundial", disse Matthias Matussek, um jornalista da revista Der Spiegel e autor de um livro que explora os motivos que os alemães têm para se orgulhar. A obra gerou uma polêmica significativa quando foi lançada em 2006 e agora seria "apenas uma entre dezenas na prateleira", disse Matussek.
De maneiras grandes e pequenas, a Alemanha está exercitando seus músculos e reafirmando um orgulho nacional há muito reprimido. O país está mais à vontade consigo mesmo e seus símbolos, como a bandeira e o hino nacional. Embora continuem conscientes da história do país, os alemães estão menos dispostos a deixar que esta defina seus atos.
A mudança não foi bem-vinda, mesmo na Alemanha. Ela provocou cenas incomuns, como esquerdistas antinacionalistas alemães rasgando duas vezes uma bandeira alemã de mais de 15 metros que imigrantes libaneses tinham pendurado na fachada de um prédio no bairro de Neukölln em Berlim neste verão, durante a Copa do Mundo, quando uma seleção cheia de filhos de imigrantes cativou o país. Há temores de um chauvinismo emergente (ou ressurgente), visto recentemente em declarações de Thilo Sarrazin, que renunciou em 9 de setembro do conselho do Banco Central alemão, depois de publicar um best-seller divisor dizendo que os imigrantes muçulmanos estão esgotando o Estado do bem-estar social e se reproduzindo mais depressa que os alemães.
Diplomatas e políticos manifestaram crescente preocupação sobre a direção da Alemanha nos últimos anos, seja ao fechar um difícil acordo sobre o gasoduto com a Rússia ou bloquear a participação da Geórgia e da Ucrânia na Otan.
O importante filósofo Jürgen Habermas advertiu recentemente que a Alemanha havia-se tornado um "colosso autoabsorvido". O financista George Soros disse neste verão em um discurso em Berlim que o governo está "colocando em risco a União Europeia" com suas políticas econômicas.
Os alemães, para cuja maioria os salários e os padrões de vida não melhoraram com o progresso econômico, estão mais decepcionados que nunca com as exigências financeiras da União Europeia. E enquanto os parceiros europeus veem a Alemanha como uma máquina de produtividade com empresas de exportação competitivas, o debate sobre o futuro se concentra na população que envelhece e encolhe e nos deficits crescentes que uma população menor e mais velha terá de pagar. Em particular, os governos municipais do país estão fortemente endividados.
A crise da dívida europeia "despertou as pessoas e as levou a fazer perguntas críticas", disse Ulla Röbke, 65, uma dona de casa da Baviera. "Não podemos sustentar outros países quando temos tantas dívidas próprias."
Uma mudança significativa ocorre enquanto a geração da Segunda Guerra Mundial chega ao fim. Para os alemães mais jovens, a guerra na Europa não é mais uma memória palpável ou um medo inteligível. Hoje, no gabinete de Merkel, somente um ministro nasceu antes do fim da guerra. Três nasceram nos anos 1970.
Como chefe da organização jovem do partido de Merkel, Philipp Missfelder, 31, é um membro importante da geração ascendente de políticos alemães. Em uma entrevista, ele não citou a França ou a Polônia como os países mais importantes para o futuro da Alemanha, mas a China e seus vizinhos, e lamentou que a União Europeia exija tantas reuniões de cúpula que Merkel "mal tem a oportunidade" de fazer viagens mais longas à Ásia para reforçar seus laços.
O público alemão está preocupado com a dívida e a crescente desigualdade no país, disse Missfelder. "As pessoas têm medo; a economia está forte, mas os salários não aumentam", ele disse, apesar de que, no outono, os trabalhadores terão de começar a pagar mais pelo seguro-saúde. "A participação na prosperidade é menor."
Mas, para Missfelder, a mudança mais ampla no orgulho nacional esteve visível em uma recente visita a um jardim da infância, onde as crianças cantavam o hino nacional, coisa que "nunca teria acontecido" quando ele era criança.
Na antiga Alemanha Oriental, Tino Petsch foi um disc-jóquei em Karl-Marx-Stadt, criando shows de luzes para suas apresentações em seu computador pessoal KC 85/3 produzido em casa. Hoje, a cidade retomou seu nome histórico de Chemnitz, e Petsch, 43, é o principal executivo de sua própria companhia de alta tecnologia, a 3D-Micromac, que produz estações de trabalho para micromáquinas a laser.
Petsch considera ultrapassadas as discussões sobre a reunificação, 20 anos depois do fato. Ele disse que a Alemanha desfruta uma reputação estelar entre os empresários nos mercados crescentes como Índia, China ou Brasil, que valorizam o "Made in Germany" e Beethoven, mas não compartilham as memórias da guerra na Europa.


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