São Paulo, segunda-feira, 27 de setembro de 2010

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Veneza debate outdoors

ELISABETTA POVOLEDO

VENEZA - Diz a lenda que a ponte dos Suspiros, que liga o Palazzo Ducale a uma antiga prisão, deve seu nome ao fato de que dali os condenados viam pela última vez a límpida laguna de Veneza.
Hoje, porém, a vista mais provavelmente seria a de um colossal outdoor anunciando joias Bulgari ou Coca-Cola sobre lonas azul-celeste, cravejadas de nuvens. Por trás delas estão as fachadas de frágeis monumentos em restauração, mas tais estruturas também geram faturamento publicitário.
Quando os outdoors da Coca foram colocados, meses atrás, diante dos prédios que ladeiam a Piazza San Marco -o coração histórico de Veneza-, alguns venezianos ficaram indignados.
"Não poderíamos ficar quietos", disse Maria Camilla Bianchini d'Alberigo, presidente de uma associação de proteção do patrimônio histórico. "Aí já é demais", completou. A entidade dela, o Fondo Ambiente Italiano, denunciou a intrusão dos anúncios, gerando um debate na opinião pública.
"O que falta é um conjunto de critérios que torne a publicidade compatível com o ambiente, para que os prédios não sejam ofendidos, e para que eles continuem visíveis", afirmou ela. As autoridades municipais alegam que, sem esses outdoors, a cidade não poderia iniciar a manutenção dos seus monumentos históricos, muitos dos quais mostram a degradação resultante dos séculos de desgaste, exacerbada por um ambiente tão cheio de água.
Renata Codello, funcionária do Ministério da Cultura responsável pelos monumentos de Veneza, disse que "os anúncios pagam a restauração dos prédios públicos, que de outra maneira não seriam reparados". "Simplesmente não estamos em posição de dizer não ao dinheiro, não por razões estéticas. Não posso rejeitar a imagem de uma garrafa quando há pedaços do Palazzo Ducale caindo no chão."
Codello disse que seu departamento recebeu US$ 200 mil para restaurações desde o começo de 2010, bem aquém dos US$ 2,6 milhões a US$ 3,9 milhões que ela solicita anualmente para as situações mais precárias.
Mas Veneza, acrescentou Codello, possui relativamente poucos espaços publicitários nos andaimes, em comparação a cidades como Roma e Florença, onde os outdoors são bem mais presentes.
O Ministério da Cultura tem um orçamento de cerca de US$ 47 milhões para a restauração desses edifícios, mas a Itália possui um rico patrimônio arquitetônico, e as verbas são sempre apertadas. Dessa quantia, US$ 1,8 milhão foram alocados a toda a região do Vêneto, que inclui Veneza.
Patrocínios privados, outrora limitados a contribuições financeiras, se tornaram menos restritivos graças a uma lei de 2004 que permite que os doadores se envolvam diretamente nos projetos de restauração. Uma fonte do Ministério da Cultura disse que a mudança não teve grande efeito na arrecadação de recursos.
Em meio às discussões sobre até que ponto interesses empresariais deveriam se intrometer em atividades culturais, e embora empresas privadas há mais de uma década estejam ativas nisso -por meio de livrarias, restaurantes e serviços de venda de ingressos-, as autoridades encarregadas de preservar o patrimônio cultural da Itália continuam desconfiando do envolvimento comercial.
"Podemos aumentar a eficiência e melhorar os resultados, mas não podemos comercializar tudo", disse Alessandra Mottola Molfino, presidente da Italia Nostra, outra agência de proteção do patrimônio. "A lição que isso passa é que há um preço para tudo."
No caso da ponte dos Suspiros e do Palazzo Ducale, a prefeitura assinou há dois anos um acordo com o Dottor Group, a empresa responsável pela restauração, autorizando-a a vender espaço publicitário. Uma fase da restauração do palácio foi apresentada em setembro, e a empresa disse que esperar concluir as obras até outubro de 2011.
"Os cofres municipais estavam vazios, então tivemos de encontrar patrocinadores", disse o prefeito Giorgio Orsoni.
O Dottor Group prometeu arrecadar US$ 2 milhões durante três anos com a publicidade, que fica afixada sobre as lonas azuis com nuvens, criadas pelo fotógrafo Oliviero Toscani, conhecido por seus anúncios para a Benetton. Pietro Dottor, presidente da empresa, disse que prefere se "concentrar no trabalho, não nas polêmicas". "Estamos realizando projetos de alta qualidade com custo zero para a cidade. Isso que é importante."
O custo total da restauração do lado do palácio que dá para o canal da Canonica, incluindo a ponte dos Suspiros, chegará a US$ 3,6 milhões, e todo o faturamento publicitário irá para o projeto.
Mas entidades ligadas ao patrimônio acham que os anúncios deveriam ser mais contidos.
"Não é uma questão de radicalismo ideológico, mas de preocupação com o caráter invasivo dos anúncios em lugares delicados, como a Piazza San Marco", disse Bianchini d'Alberigo. Em Veneza, "existe um diálogo especial entre arquitetura, pedras, água e o homem, o que os anúncios rompem", disse.
Outros acreditam que poderia ser possível arrecadar mais para a preservação por meio de doações diretas, ou colocando a própria prefeitura para vender os anúncios. É uma noção que Orsoni rejeita. "A Prefeitura não é agência de publicidade; não é o nosso negócio", disse.


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