São Paulo, segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

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Os cliques que reconfortam

Saudosismo pode afetar design do futuro

JOSHUA BRUSTEIN
ENSAIO

Assim como o ser humano carrega restos de uma cauda pré-histórica e um inútil apêndice intestinal, os equipamentos que usamos também exibem as marcas do seu processo evolutivo.
Câmeras digitais produzem um tranquilizador -embora artificial- ruído "retrô" de obturador; os celulares têm teclados com uma configuração concebida para evitar que máquinas de escrever emperrassem; e agora o Kindle, leitor de livros eletrônicos da Amazon, vai complementar seus "números de localização" com uma numeração de página que corresponde à dos livros reais.
Há algo de absurdo nisso. Os e-books, por definição, não têm páginas. Dependendo do tamanho da fonte, a tela pode ser avançada muitas vezes antes de "virar a página". E há livros com muitas edições físicas ou textos que só existem no espaço digital. Mas decisões como a da Amazon não se baseiam só na praticidade.
"Os números de localização num Kindle são racionais, e fazem sentido para o meio -mas não correspondem às expectativas emocionais sobre o que é um livro", disse Adam Greenfield, diretor-gerente do escritório de urbanismo Urbanscale, de Nova York, e autor de "Everyware: The Dawning Age of Ubiquitous Computing" -o título é um trocadilho com a expressão que significa "em todo lugar"; o subtítulo significa "o alvorecer da era da computação onipresente".
Designers de todos os campos se veem regularmente diante desse dilema: incorporar pistas que mantenham as pessoas presas ao que já existiu ou abandonar as convenções.
Nos transportes, por exemplo, a potência dos motores a vapor foi inicialmente descrita em comparação aos cavalos. Os projetistas de carros incorporaram alusões visuais às carruagens, como os raios nas rodas.
Isso é comum também no mundo digital. A interface básica dos computadores pessoais foi concebida como uma escrivaninha com pastas e uma lata de lixo no canto, porque era assim que as pessoas trabalhavam.
Mas as referências ao passado podem atrapalhar a imaginação dos designers, segundo Bill Moggridge, diretor do Museu Nacional do Design Cooper-Hewitt. "A tendência é usar uma forma de conservadorismo", disse ele. "Mas, se você quiser criar algo realmente inovador, a utilidade disso começa a se apagar."
Tal tensão é palpável em muitos esforços para criar novas experiências de mídia digital. O jornal digital "The Daily", de Rupert Murdoch, concebido especificamente para "tablets", incorpora vídeo e interatividade. Ao mesmo tempo, é feito para aparecer diariamente no capacho digital do leitor, conceito que parece tão antiquado quanto o relógio de bolso em comparação aos sites sempre atualizados.
No iPad, da Apple, o usuário agenda compromissos em um calendário que fica guardado num suporte de couro na tela, faz anotações no que parece ser um bloco de folhas e passa o dedo na tela para virar as páginas de livros digitais. Tais referências supérfluas são chamadas de "skeuomorfismos" (das palavras gregas para utensílio e forma).
"Isso deixa muitos designers malucos", afirmou Craig Mod, diagramador da Flipboard, revista feita para o iPad. Na opinião dele, o Kindle parece ser uma nova versão para a ideia de um livro de capa mole.
Por outro lado, comprar obras na livraria do Kindle consiste em percorrer listas de títulos, o que é mais parecido com consultar um banco de dados do que olhar uma livraria. Mas, se com isso os clientes da Amazon ficarem menos propensos a julgarem os e-books por suas capas, ao menos alguns leitores hão de considerar isso um verdadeiro avanço.


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