São Paulo, domingo, 20 de junho de 2004

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Loucos por números

O erro da Folha sugere algumas reflexões. Primeiro, e antes de tudo: os jornais e os jornalistas adoram relatórios e números. Se chegam, então, de agências internacionais, nem se dão ao trabalho de checá-los. Foi o que aconteceu nesse caso. Pesquisas, relatórios e estatísticas são grandes aliados do jornalismo. Ajudam a tirá-lo do impressionismo e do achismo. Mas devem ser usados com parcimônia e critérios senão causam indigestão.
Há um excesso de pesquisas e relatórios nos jornais. Poucas vezes esses informes são tratados com o cuidado que exigem. Deveriam ser vistos como matéria-prima a ser burilada, mas freqüentemente vão para as páginas como chegam.
Contei, de domingo até sexta, 27 reportagens na Folha baseadas em pesquisas ou relatórios. Alguns foram manchetes, como a de domingo passado que dizia que "25% dos filhos da elite bebem demais". Não relacionei nesta contagem os indicadores econômicos diários.
A ânsia por números também fica evidente em grandes coberturas de multidões. Como o jornal já não dispõe, como em outras épocas, do serviço de aferição do Datafolha, fica sujeito a cálculos imprecisos, mas que mesmo assim usa com destaque.
Foi o caso da Parada Gay, em São Paulo, que teria juntado 1,5 milhão de participantes segundo a PM. Como ela chegou a esse cálculo, ninguém sabe. Todos os jornais reproduzem e ponto. Minha opinião é que são chutes. Assim como são chutes várias estimativas que engordam os relatórios que consumimos. O problema não são os relatórios, mas nós, jornalistas, que não sabemos questioná-los e usá-los.
Nesta semana, a Folha publicou outro relatório que me chamou a atenção. Assinado pelo Departamento de Estado americano, dizia que o Brasil não pune tráfico humano, o que é uma verdade. Mas trazia alguns números questionáveis. Segundo o relatório, 75 mil mulheres e adolescentes brasileiras atuam em redes de prostituição na Europa e 5.000 na América Latina.
Onde encontraram esses números? Como o relatório não dizia, pedi ajuda ao correspondente em Washington, Fernando Canzian, que recebeu os dados. Segundo o Departamento de Estado dos EUA, o número de prostitutas brasileiras na Europa é da ONU e do International Helsinki Federation for Human Rights. E o das prostitutas na América Latina, do Cecria (Centro de Referência, Estudos e Ações sobre Crianças e Adolescentes), de Brasília.
Depoimento da coordenadora do Cecria, Neide Castanha: "Gostaríamos muito de ter uma quantificação. Infelizmente, não temos. Não trabalhamos com números, nem sequer com estimativas. Jamais quantificamos".
E agora?


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