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Quem tem medo da razão?
FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO
Um dos responsáveis pelo protesto contra o papa disse que ele usa a razão como um cavalo-de-tróia para entrar no mundo da ciência
EM JANEIRO, no mundo todo,
jornais noticiaram um disparatado ataque à liberdade de expressão. Numa grande universidade
pública, um grupo fundamentalista,
por meio de protestos que incluíram a
invasão da reitoria, impediu o acadêmico mais influente da atualidade de
participar da aula magna de início do
semestre.
A universidade era La Sapienza, em
Roma (Itália), o grupo fundamentalista era de militantes anticatólicos e
o acadêmico era Joseph Ratzinger,
professor universitário considerado
brilhante e que, como Bento 16, se
tornou o pensador mais lido e discutido da atualidade.
O abaixo-assinado dos professores
tinha 67 assinaturas (entre mais de
4.500 professores) e os estudantes
eram uma centena. O papa foi defendido na Itália e no mundo, inclusive
por críticos tradicionais da igreja, o
texto foi lido e aplaudido na universidade e mais de 200 mil pessoas participaram de um ato de solidariedade
ao papa na praça São Pedro. Mas o
episódio faz pensar.
O termo fundamentalismo refere-se a uma posição que se recusa ao diálogo e à argumentação racional, chegando à violência para tentar impor-se. Normalmente, é aplicado a grupos
religiosos e étnicos que não admitem
visões de mundo que consideram destrutivas a eles e seus valores.
O episódio de La Sapienza, contudo, mostra-nos que o fundamentalismo não é exclusividade desses grupos, podendo chegar a quem se considera defensor da liberdade de pensamento e da mentalidade moderna.
Bento 16, de certo modo, já havia
denunciado esse perigo em Regensburg (Alemanha), ao dizer que toda
religião que não interage com a razão
se torna violenta.
A passagem foi tida como um ataque ao islamismo, mas é um alerta
que serve a todas as crenças -inclusive à aparente não-crença, que muitas
vezes disfarça uma crença verdadeiramente irracional.
Disponível no site do Vaticano, o
discurso não proferido propõe que,
numa sociedade plural, o papa (e a
própria igreja) "fala como representante de uma comunidade crente, na
qual, durante os séculos da sua existência, amadureceu uma determinada sabedoria da vida; fala como representante de uma comunidade que
guarda em si um tesouro de conhecimento e de experiência ética, que se
revela importante para toda a humanidade: nesse sentido, fala como representante de uma razão ética".
O que está sendo proposto aqui não
é uma confissão religiosa, mas uma
"razão ética". Não uma ética de convenções e preconceitos, mas, sim, a
sabedoria da vida e as experiências
concretas de uma comunidade humana. Trata-se, portanto, de uma proposta aberta à indagação racional e à
comparação com outras propostas.
Em seu discurso, Bento 16 diria ainda: "O homem quer conhecer; quer a
verdade (...). Mas a verdade nunca é
apenas teórica. Agostinho (...) notou
uma reciprocidade entre "scientia" e
"tristitia': o simples saber deixa-nos
tristes. E, realmente, quem se limita a
ver e apreender tudo aquilo que acontece no mundo acaba por ficar triste".
A tristeza, a desilusão e a dor diante
do sofrimento, do mal, das falências
do mundo humano não são sombras
que ameaçam continuamente nosso
olhar sobre o mundo? Esse é um discurso dogmático e confessional ou
um olhar atento à experiência cotidiana de quem olha criticamente a
realidade?
O papa continua: "Verdade significa mais do que saber: o conhecimento
da verdade tem como finalidade o conhecimento do bem (...). A verdade
nos torna bons, e a bondade é verdadeira: tal é o otimismo que vive na fé
cristã, porque a esta foi concedida a
visão do "Logos", da Razão criadora
que, na encarnação de Deus, se revelou conjuntamente como o Bem, como a própria Bondade".
Um dos responsáveis pelos protestos contra o papa disse que ele usa a
razão como um cavalo-de-tróia para
entrar no mundo da ciência.
Bento 16, de fato, nos convida a recuperar o horizonte "sapiencial" da
razão, não reduzi-la a um instrumento de poder e dominação, mas torná-la busca pelo amor e pelo bem.
Esse é um estratagema para instaurar o obscurantismo ou um convite,
vindo de séculos de lutas e esforços da
inteligência humana, lançado ao coração do ser humano?
Dizem os cristãos que o encontro
com Cristo dá a coragem para olhar
-com esperança- para nós mesmos,
nossas contradições, nossos medos e
limites, mas, sobretudo, para nosso
desejo de amor e plenitude. Esse "realismo" e essa "racionalidade" são a
grande contribuição da igreja numa
sociedade pluralista. Afinal, quem
tem medo da razão?
FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO, sociólogo e biólogo,
é coordenador de Projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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