São Paulo, sexta-feira, 01 de fevereiro de 2008

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Quem tem medo da razão?

FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO

Um dos responsáveis pelo protesto contra o papa disse que ele usa a razão como um cavalo-de-tróia para entrar no mundo da ciência

EM JANEIRO, no mundo todo, jornais noticiaram um disparatado ataque à liberdade de expressão. Numa grande universidade pública, um grupo fundamentalista, por meio de protestos que incluíram a invasão da reitoria, impediu o acadêmico mais influente da atualidade de participar da aula magna de início do semestre.
A universidade era La Sapienza, em Roma (Itália), o grupo fundamentalista era de militantes anticatólicos e o acadêmico era Joseph Ratzinger, professor universitário considerado brilhante e que, como Bento 16, se tornou o pensador mais lido e discutido da atualidade.
O abaixo-assinado dos professores tinha 67 assinaturas (entre mais de 4.500 professores) e os estudantes eram uma centena. O papa foi defendido na Itália e no mundo, inclusive por críticos tradicionais da igreja, o texto foi lido e aplaudido na universidade e mais de 200 mil pessoas participaram de um ato de solidariedade ao papa na praça São Pedro. Mas o episódio faz pensar.
O termo fundamentalismo refere-se a uma posição que se recusa ao diálogo e à argumentação racional, chegando à violência para tentar impor-se. Normalmente, é aplicado a grupos religiosos e étnicos que não admitem visões de mundo que consideram destrutivas a eles e seus valores.
O episódio de La Sapienza, contudo, mostra-nos que o fundamentalismo não é exclusividade desses grupos, podendo chegar a quem se considera defensor da liberdade de pensamento e da mentalidade moderna. Bento 16, de certo modo, já havia denunciado esse perigo em Regensburg (Alemanha), ao dizer que toda religião que não interage com a razão se torna violenta.
A passagem foi tida como um ataque ao islamismo, mas é um alerta que serve a todas as crenças -inclusive à aparente não-crença, que muitas vezes disfarça uma crença verdadeiramente irracional.
Disponível no site do Vaticano, o discurso não proferido propõe que, numa sociedade plural, o papa (e a própria igreja) "fala como representante de uma comunidade crente, na qual, durante os séculos da sua existência, amadureceu uma determinada sabedoria da vida; fala como representante de uma comunidade que guarda em si um tesouro de conhecimento e de experiência ética, que se revela importante para toda a humanidade: nesse sentido, fala como representante de uma razão ética".
O que está sendo proposto aqui não é uma confissão religiosa, mas uma "razão ética". Não uma ética de convenções e preconceitos, mas, sim, a sabedoria da vida e as experiências concretas de uma comunidade humana. Trata-se, portanto, de uma proposta aberta à indagação racional e à comparação com outras propostas.
Em seu discurso, Bento 16 diria ainda: "O homem quer conhecer; quer a verdade (...). Mas a verdade nunca é apenas teórica. Agostinho (...) notou uma reciprocidade entre "scientia" e "tristitia': o simples saber deixa-nos tristes. E, realmente, quem se limita a ver e apreender tudo aquilo que acontece no mundo acaba por ficar triste".
A tristeza, a desilusão e a dor diante do sofrimento, do mal, das falências do mundo humano não são sombras que ameaçam continuamente nosso olhar sobre o mundo? Esse é um discurso dogmático e confessional ou um olhar atento à experiência cotidiana de quem olha criticamente a realidade?
O papa continua: "Verdade significa mais do que saber: o conhecimento da verdade tem como finalidade o conhecimento do bem (...). A verdade nos torna bons, e a bondade é verdadeira: tal é o otimismo que vive na fé cristã, porque a esta foi concedida a visão do "Logos", da Razão criadora que, na encarnação de Deus, se revelou conjuntamente como o Bem, como a própria Bondade".
Um dos responsáveis pelos protestos contra o papa disse que ele usa a razão como um cavalo-de-tróia para entrar no mundo da ciência.
Bento 16, de fato, nos convida a recuperar o horizonte "sapiencial" da razão, não reduzi-la a um instrumento de poder e dominação, mas torná-la busca pelo amor e pelo bem. Esse é um estratagema para instaurar o obscurantismo ou um convite, vindo de séculos de lutas e esforços da inteligência humana, lançado ao coração do ser humano?
Dizem os cristãos que o encontro com Cristo dá a coragem para olhar -com esperança- para nós mesmos, nossas contradições, nossos medos e limites, mas, sobretudo, para nosso desejo de amor e plenitude. Esse "realismo" e essa "racionalidade" são a grande contribuição da igreja numa sociedade pluralista. Afinal, quem tem medo da razão?


FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO, sociólogo e biólogo, é coordenador de Projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

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