|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
O que temos para comemorar?
RICARDO ANTUNES
Vivemos uma explosão de denúncias sobre o aviltamento do trabalho. O espetáculo se esparrama por todas as partes
VIVEMOS uma explosão de denúncias sobre o aviltamento do
trabalho. A cada dia vemos
mais exemplos de trabalho escravo no
campo, nos rincões do latifúndio. No
agronegócio do açúcar, cortar mais de
dez toneladas de cana por dia é a média por baixo, "low profile".
No final do ano passado, esta Folha
descreveu a degradação do trabalho
imigrante, especialmente boliviano,
nas empresas de confecção em São
Paulo. Jornadas de até 17 horas diárias em troca de casa e comida. Trabalho imigrante no limite da condição degradante.
Mas o espetáculo é multifacético e
se esparrama por todas as partes:
"chicanos" nos EUA, decasséguis no
Japão, "gastarbeiters" na Alemanha,
"lavoro nero" na Itália, "brasiguaios"
no Paraguai -a lista não tem fim.
Sem falar nos desempregados do Leste Europeu que invadem o "pequeno
canto do mundo" ocidental em busca
dos restos do labor.
Se nos inícios do século 20 os povos
do Norte migraram em massa para o
Sul, encontrando acolhida, agora presenciamos o exato inverso, pois o fluxo migracional mudou de direção. Os
deserdados do Sul tentam furar os
bloqueios do Norte, cujo exemplo
mais abjeto é o muro da vergonha que
separa os EUA do México.
Ou, mais sutil, mas também cruel, a
barreira das polícias alfandegárias
nos aeroportos do chamado "mundo
civilizado", obstando a entrada dos
"bárbaros" do fim do mundo. O
exemplo da Espanha contra brasileiros é a mais recente expressão fenomênica do problema e fala por si só.
Mas há uma autêntica conquista da
chamada globalização: enquanto os
capitais migram com velocidade mais
ágil que a dos foguetes, o trabalho deve mover-se no passo das tartarugas.
Capitais transnacionais livres e trabalhadores nacionais cativos.
Num mundo cada vez mais maquinal, informacional e digital, presenciamos também a explosão do
"cybertariado" (Ursula Huws), trabalhador qualificado da era da cibernética que vivencia as condições do velho proletariado. A informalização,
dada pela perda de liames contratuais
de trabalho, vem aumentando em escala global, num contexto de ampliação de todas as formas de terceirização, gerando as mais distintas modalidades de trabalho precário, que se
desenvolvem com a chamada polivalência da era flexível.
No Japão, jovens operários migram
em busca de trabalho nas cidades e
dormem em cápsulas de vidro, do tamanho de um caixão. São os operários encapsulados.
Do outro lado do mundo, na nossa
América Latina, encontramos trabalhadoras domésticas (mulheres e
crianças) que atingem a jornada semanal de 90 horas de trabalho, com
um dia de folga ao mês (Mike Davis),
numa era em que poderíamos trabalhar dez vezes menos, se a lógica predominante não fosse tão destrutiva
para a humanidade que depende de
seu trabalho para sobreviver.
São essas algumas cenas do trabalho hoje. E ninguém poderá buscar
um emprego, atualmente, se não demonstrar que realiza "trabalhos voluntários". É curioso: para conseguir
emprego, são "obrigados" a realizar
trabalhos "voluntários".
E isso sem falar na explosão do estagiário, candidato fresquinho a roubar um trabalho efetivo com remuneração de escravo. Ou nas tantas manifestações de desigualdade de gênero,
em que as mulheres trabalham mais,
com menos direitos e reduzida remuneração. Sem falar das diferenciações
étnicas e raciais.
Quero terminar indicando só mais
um exemplo de trabalho degradado: a
crescente inclusão de crianças no
mercado de trabalho global, nos países latino-americanos, asiáticos, africanos, bem como nos países centrais,
como EUA, Inglaterra, Itália, Japão,
sem falar na China, Índia etc.
Não importa que o trabalho adulto
se torne supérfluo e que muitos milhões de homens e mulheres em idade de trabalho vivenciem o desemprego estrutural. Mas os meninos e
meninas devem, desde muito cedo,
fazer parte do ciclo produtivo: seu
corpo brincante transfigura-se muito
precocemente em corpo produtivo
para o capital (Maurício da Silva).
Na produção de sisal, na indústria
de calçados e confecções, no cultivo
de algodão e cana, nas pedreiras, carvoarias e olarias, no trabalho doméstico, são inúmeros os espaços em que
o trabalho infantil valoriza o capital.
Na indústria de tapeçaria da Índia,
lembra Mike Davis, as crianças trabalham de cócoras em jornadas que
chegam a 20 horas por dia. E na indústria do vidro, trabalham ao lado
dos tanques com temperatura próxima de 1.800 graus centígrados ("The
State of the World's Children - 1997",
Unicef).
Seriam, então, esses exemplos excrescências dentro de uma ordem societal preservadora do trabalho?
RICARDO LUIZ COLTRO ANTUNES, 54, é professor titular de sociologia do trabalho do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Unicamp (Universidade Estadual de
Campinas) e autor, entre outros livros, de "Os Sentidos do
Trabalho".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Carlos Lupi: Dia do Trabalho: uma história de lutas Próximo Texto: Painel do Leitor Índice
|