São Paulo, sexta-feira, 01 de junho de 2001

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Apologia de Sócrates e de ACM

MAURÍCIO TUFFANI

Imaginemos um cenário de daqui a alguns séculos, com a humanidade começando a se reestruturar após um longo período de catástrofes ecológicas, de aquecimento global e de falta de água, de alimentos e de energia. Para completar esse quadro apocalíptico, conflitos epidêmicos teriam ajudado a dizimar grande parte da população e também do acervo do conhecimento produzido ao longo da história.
Na tentativa de recuperar a obra dos grandes pensadores da humanidade, pesquisadores se deparariam com a impressionante semelhança entre os dados disponíveis sobre Sócrates, em Atenas, em 399 a.C., e Antonio Carlos Magalhães, em Brasília, em 2001.
Cerca de 2.400 anos teriam separado no tempo dois exemplos de coragem diante da injustiça. Em seus discursos perante seus juízes, ambos teriam sido inflexíveis na manutenção de seus princípios éticos: nada de bajulação e nenhum apelo à piedade para aqueles que os teriam transformado em réus. Dos fragmentos do livro "Elogio da Filosofia", de 1953, do francês Maurice Merleau-Ponty, os pesquisadores pinçariam uma frase sobre Sócrates, mostrando que ela se aplicaria também a ACM: "No fim das contas, a cidade é ele e os outros é que são os inimigos das leis, os outros é que são julgados e ele é que é o juiz. Inversão inevitável no filósofo, pois ele justifica o exterior pelos valores que vêm do interior". Acompanhando o texto francês, os estudiosos resgatadores da cultura humana constatariam que vale dizer também sobre o senador baiano que, em relação aos seus condenadores, ele teria causado-lhes mal-estar, infringindo-lhes a "imperdoável ofensa de os fazer duvidar de si próprios".


Os fatos se repetem na história; na primeira vez, eles ocorrem como tragédia; na segunda vez, como farsa
Uma foto de ACM durante seu discurso, com as mãos erguidas para os céus, ao lado de uma outra, com os membros do Conselho de Ética do Senado em expressões petrificadas, passaria a ser sua principal imagem para a posteridade. Os senadores Ramez Tebet (PMDB-MS) e Saturnino Braga (PSB-RJ), além do próprio procurador da República Luiz Francisco de Souza, nesse imbróglio confundido com um parlamentar do século 21, seriam comparados aos atenienses Anito, Meleto e Licão, os principais acusadores de Sócrates, no século 4º a.C. Registros da calorosa acolhida do político baiano em sua terra natal, no dia seguinte à sua renúncia, com uma festa popular nas ruas de Salvador, corroborariam a sua imagem de integridade e de total independência com relação à máquina do poder.
Os fragmentos do célebre discurso de ACM de 2001 passariam também para a história como uma séria advertência para a crise ambiental e energética mundial: "Vamos viver o apagão energético por culpa exclusiva de um governo imprevisível, moroso e autista". Suas palavras dirigidas ao presidente da República recomendando-o a deixar de se considerar onipotente e a assumir os seus erros em vez de atribuí-los aos outros passariam para a posteridade como um chavão tão difundido quanto o "de tanto ver triunfar as nulidades", de Ruy Barbosa. A sigla FHC ficaria, na história, como um exemplo da imprevidência e da irresponsabilidade dos governos diante do iminente esgotamento dos recursos naturais, afetando irreversivelmente o atendimento das necessidades das futuras gerações. Nenhum registro teria sido encontrado até então, pelos pesquisadores, da extensa obra produzida pelo brilhante sociólogo Fernando Henrique Cardoso. O presidente da República ficou sem outras referências.
Se esse hipotético cenário todo vier no futuro a se concretizar, só espero que pelo menos um pequeno trecho da obra de Karl Marx venha a ser resgatado. Trata-se do primeiro parágrafo de seu livro "O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte", de 1852, em que ele afirma que, ao dizer que os fatos se repetem na história, Hegel esqueceu-se de acrescentar que, na primeira vez, eles ocorrem como tragédia; na segunda, como farsa.


Maurício Tuffani, 43, é jornalista especializado em ciência e meio ambiente e assessor editorial da revista "Galileu", da Editora Globo.

E-mail: mtuffani@edglobo.com.br



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