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TENDÊNCIAS/DEBATES
Apologia de Sócrates e de ACM
MAURÍCIO TUFFANI
Imaginemos um cenário de daqui a
alguns séculos, com a humanidade
começando a se reestruturar após um
longo período de catástrofes ecológicas,
de aquecimento global e de falta de
água, de alimentos e de energia. Para
completar esse quadro apocalíptico,
conflitos epidêmicos teriam ajudado a
dizimar grande parte da população e
também do acervo do conhecimento
produzido ao longo da história.
Na tentativa de recuperar a obra dos
grandes pensadores da humanidade,
pesquisadores se deparariam com a impressionante semelhança entre os dados disponíveis sobre Sócrates, em Atenas, em 399 a.C., e Antonio Carlos Magalhães, em Brasília, em 2001.
Cerca de 2.400 anos teriam separado
no tempo dois exemplos de coragem
diante da injustiça. Em seus discursos
perante seus juízes, ambos teriam sido
inflexíveis na manutenção de seus princípios éticos: nada de bajulação e nenhum apelo à piedade para aqueles que
os teriam transformado em réus. Dos
fragmentos do livro "Elogio da Filosofia", de 1953, do francês Maurice Merleau-Ponty, os pesquisadores pinçariam
uma frase sobre Sócrates, mostrando
que ela se aplicaria também a ACM: "No
fim das contas, a cidade é ele e os outros
é que são os inimigos das leis, os outros
é que são julgados e ele é que é o juiz. Inversão inevitável no filósofo, pois ele
justifica o exterior pelos valores que
vêm do interior". Acompanhando o
texto francês, os estudiosos resgatadores da cultura humana constatariam
que vale dizer também sobre o senador
baiano que, em relação aos seus condenadores, ele teria causado-lhes mal-estar, infringindo-lhes a "imperdoável
ofensa de os fazer duvidar de si próprios".
Os fatos se repetem na
história; na primeira
vez, eles ocorrem como
tragédia; na segunda
vez, como farsa
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Uma foto de ACM durante seu discurso, com as mãos erguidas para os céus,
ao lado de uma outra, com os membros
do Conselho de Ética do Senado em expressões petrificadas, passaria a ser sua
principal imagem para a posteridade.
Os senadores Ramez Tebet (PMDB-MS) e Saturnino Braga (PSB-RJ), além
do próprio procurador da República
Luiz Francisco de Souza, nesse imbróglio confundido com um parlamentar
do século 21, seriam comparados aos
atenienses Anito, Meleto e Licão, os
principais acusadores de Sócrates, no
século 4º a.C. Registros da calorosa acolhida do político baiano em sua terra
natal, no dia seguinte à sua renúncia,
com uma festa popular nas ruas de Salvador, corroborariam a sua imagem de
integridade e de total independência
com relação à máquina do poder.
Os fragmentos do célebre discurso de
ACM de 2001 passariam também para a
história como uma séria advertência
para a crise ambiental e energética
mundial: "Vamos viver o apagão energético por culpa exclusiva de um governo imprevisível, moroso e autista". Suas
palavras dirigidas ao presidente da República recomendando-o a deixar de se
considerar onipotente e a assumir os
seus erros em vez de atribuí-los aos outros passariam para a posteridade como
um chavão tão difundido quanto o "de
tanto ver triunfar as nulidades", de Ruy
Barbosa. A sigla FHC ficaria, na história,
como um exemplo da imprevidência e
da irresponsabilidade dos governos
diante do iminente esgotamento dos recursos naturais, afetando irreversivelmente o atendimento das necessidades
das futuras gerações. Nenhum registro
teria sido encontrado até então, pelos
pesquisadores, da extensa obra produzida pelo brilhante sociólogo Fernando
Henrique Cardoso. O presidente da República ficou sem outras referências.
Se esse hipotético cenário todo vier no
futuro a se concretizar, só espero que
pelo menos um pequeno trecho da obra
de Karl Marx venha a ser resgatado.
Trata-se do primeiro parágrafo de seu
livro "O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte", de 1852, em que ele afirma
que, ao dizer que os fatos se repetem na
história, Hegel esqueceu-se de acrescentar que, na primeira vez, eles ocorrem
como tragédia; na segunda, como farsa.
Maurício Tuffani, 43, é jornalista especializado em ciência e meio ambiente e assessor editorial
da revista "Galileu", da Editora Globo.
E-mail: mtuffani@edglobo.com.br
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