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RUY CASTRO
Clássicos da ditadura
RIO DE JANEIRO - Foi anteontem, há 40 anos, na final de um festival da canção. A vitoriosa "Sabiá" estava sendo vaiada por 15 mil bocas no Maracanãzinho -e aplaudida por, se tanto, 10 por cento disso.
A malta não se conformava com que
a guarânia de Geraldo Vandré, "Caminhando", com sua letra explosiva, perdesse para "aquela modinha"
de Tom Jobim e Chico Buarque.
Alguém soltou dois sabiás quando o aturdido Tom e a dupla Cynara
e Cybele entraram para cantar. A
intenção era boa, mas as pobres
aves voaram em direção às luzes e,
desorientadas, deram uma rasante
sobre a platéia -foram capturadas
e despedaçadas. Naquela noite, os
sabiás eram a alienação, o conformismo, a passividade diante da
ditadura.
Vandré, pouco antes, tentara
consolar o público com uma frase
de efeito: "A vida não se resume a
festivais" -embora estes fizessem
grande parte da sua, porque ele disputava dois ou três por ano. Nelson
Rodrigues, assistindo pela TV,
constatou que o rosto de Vandré,
em close, não disfarçava o travo pela derrota. "Fosse outro", escreveu
Nelson, "ligaria empolgado para a
mãe: "Mamãe! Mamãe! Tirei o segundo lugar!'".
Ao contrário do que a posteridade daria a entender, os estudantes
de 1968 não saíam às ruas cantando
"Caminhando" ou qualquer outra.
Quem cantava nas passeatas era a
borracha da polícia nas costas dos
rapazes e moças -e alguns destes,
que às vezes se cantavam mutuamente depois que a passeata terminava e o perigo passara.
Mas a ditadura durou o suficiente
para fazer da cantiga de Vandré um
clássico do panfleto, assim como a
linda "Sabiá" se tornaria o hino dos
exilados. A música popular tinha
essa força -fornecia-nos a trilha
sonora e, com isso, nos fazia acreditar que éramos os astros e estrelas
dos nossos próprios filmes.
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