São Paulo, sexta-feira, 02 de junho de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Manual de instruções de nossa morada

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

VOCÊ JÁ pensou que esse corpo que o veste de músculos, nervos, vasos, gordura, massa encefálica e órgãos com diferentes funções, coberto por uma extensa e suave pele, custou centenas de milhões de anos de aprimoramento genético/ darwiniano para ser-lhe oferecido gratuitamente de morada? Que a ciência levou milhares de anos, empiricamente, e centenas, cientificamente, para desvendar um pouco seu funcionamento e a origem de seus possíveis defeitos e que tem hoje conhecimento de que a grande maioria desses defeitos ocorre por falta de uma manutenção adequada? Você já se preocupou com o fato de que ninguém lhe ofereceu um manual de manutenção nem de construção para cuidar dessa preciosidade? Pois bem, o encontro da ciência com a antropologia, a filogenética e a saúde começa a se fazer agora nessa direção, apesar de pouco percebido. Conhecemos as causas de quase todas as doenças e sabemos que a maioria delas se deve a hábitos inadequados. Recentemente, a OMS publicou um extenso trabalho no qual demonstra que, se os corrigirmos (manutenção adequada), estaremos evitando 40% das mortes por doenças neoplásicas e 80% das mortes por doenças cardiovasculares.


A educação para a saúde, garantindo bons hábitos de vida, é o mais relevante avanço que pode ser dado em saúde pública


O exemplo do câncer do colo de útero é ilustrativo: trata-se de uma doença sexualmente transmissível, causada pelo vírus do HPV. Se ensinarmos as mulheres a praticarem coito protegido e curarmos seus corrimentos, feridas e eventuais lesões viróticas, elas não terão esse câncer. Isso já ocorre em vários países mesmo antes da vacina anti-HPV. Para isso, basta uma atenção primária eficiente, de fácil acesso e bom acolhimento. Apesar disso, pasmem, morrem, sistematicamente, 5.000 mulheres dessa doença anualmente no Brasil. A história da maioria das outras enfermidades e mortes é semelhante. Como conclusão, hoje, a educação para a saúde, garantindo bons hábitos de vida, é o mais relevante avanço que pode ser dado em saúde pública. Diagnóstico precoce já se tornou arcaico, pois significa esperar a doença começar para diagnosticá-la e tratá-la -quando conhecemos suas causas e podemos evitá-la. É uma oportunidade ímpar que os países em desenvolvimento podem usar para, a custo baixíssimo e sem repetir erros, subir de uma só vez vários degraus da escada do aprimoramento da saúde. Colocar isso na prática, entretanto, não é fácil. Hábitos fazem parte da cultura, e esta se transmite e persiste surda e insistentemente. Temos trabalhado essa questão com as mulheres. Nos últimos dez anos, em uma pesquisa conjunta de matemáticos, programadores, médicos e epidemiólogos, ensinamos o computador a dialogar com as mulheres e conseguimos criar um programa que, analisando as respostas dadas a um questionário com 90 perguntas, em poucos segundos oferece avaliação individualizada de risco para as 12 principais doenças que podem acometê-las e a razão desses riscos. Esse é o início do processo de educação que, ao usar como modelo a própria pessoa, desperta sua atenção. A seguir, é oferecida uma completa orientação personalizada sobre mudanças de hábitos. Tudo pode ser impresso em três ou quatro folhas e levado para casa, lido, relido e discutido com os demais membros da família. Um médico, para fazer isso, leva quatro horas; o computador faz em poucos minutos. No Hospital das Clínicas e no Pérola Byington, durante os últimos cinco anos, aplicamos o método para 13.112 mulheres, e os resultados foram animadores em termos de entendimento, aceitação e mudança de hábitos. O programa agora está à disposição em todos os telecentros dos CEUs e em implantação em outros 60 telecentros da cidade, com tendência a ser oferecido em todos. É uma forma de fazer inclusão digital e educação para a saúde ao mesmo tempo. Colocamos o programa à disposição na internet (http://portaleducacao.prefeitura.sp.gov.br). Mais de 300 mulheres por dia já estão usufruindo dele. Estamos conseguindo, depois de 15 anos de trabalho, universalizar, a um custo baixíssimo, um processo de educação para saúde personalizado. Se cultivarmos bons hábitos, poderemos desfrutar do nosso potencial genético e fazê-lo sem desvalorizar o trabalho médico de diagnóstico e tratamento -ao contrário, aliviando-o, ao prevenir efetivamente as doenças. A modernidade na saúde passa pela educação.
JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI , 71, professor titular aposentado de ginecologia da USP e da Unicamp, é deputado federal pelo PFL-SP. Foi secretário municipal da Educação de São Paulo (2005-2006), secretário de Estado da Educação e Saúde (1986-1991) e reitor da Unicamp (1982-1986).

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