São Paulo, segunda-feira, 02 de setembro de 2002

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As massas voláteis

GAUDÊNCIO TORQUATO


Não se espere um tratado de boas maneiras. Até em países de cultura política avançada, a virulência faz parte do jogo


Os ventos que sopram, após as primeiras escaramuças televisivas, mostram que virão ainda chuvas fortes pelo lado da serra do Zé e pela seara do Gomes. A subida de José Serra e a descida de Ciro Gomes eram muito previsíveis, a não ser que o eleitorado brasileiro fosse um ente insensível e alheio às coisas que ocorrem ao redor.
Ora, é só fazer as contas: os maiores contingentes eleitorais fazem parte das chamadas massas amorfas, que somam cerca de 30% do eleitorado nacional (34,5 milhões), e a maior faixa eleitoral, com quase 28 milhões de eleitores, é a do grupo que tem de 25 a 34 anos de idade. Esse tipo de eleitor é instável. Serra tem se beneficiado da volatilidade.
Ciro não tem sido inteligente, ao dar vazão ao destempero. Briga com a sociedade organizada, quando, ao fazer ironia contra um estudante negro, atinge em cheio uma comunidade racial. Briga com os meios de comunicação, ao fazer acusações sobre preferência de jornais e revistas, sentindo-se discriminado. Briga com os repórteres, ao desferir pontadas em fotógrafos. E briga com o eleitor, ao cometer a ingenuidade de chamar um interlocutor de burro, mesmo que este o tenha provocado.
Até aí, tudo bem. A coisa pega feio quando esses fatos são noticiados. A mídia abre espaços para o destempero de Ciro e o programa de José Serra faz chegar os desvarios às margens da sociedade. Bom para Serra, ruim para Ciro.
Na análise, sobra espaço para a discussão sobre a eficácia do ataque em campanha eleitoral. Pois bem, ataque substantivo faz mal ao adversário. Trata-se de ataque feito com armamento adequado: demonstração de propostas inconsistentes, incoerências, inadequações. Ataque adjetivado, ao contrário, não é aceito pelo eleitor: coisas como ataques à pessoa, insinuações maldosas, envolvimento de familiares. Nesse caso, o ataque se volta contra o atacante.
O ataque de Serra a Ciro foi substantivado, e não adjetivado. Calhou bem, a ponto de corroer a integridade da imagem do concorrente.
Não se espere do jogo político um tratado de boas maneiras. A política é um campo de batalha, onde a suavização de pontos fracos e a maximização de pontos fortes dos candidatos alimentam as armas de defesa e ataque. Mesmo em países de cultura política avançada, a virulência faz parte do jogo. Quem pensa que nos Estados Unidos se faz política com punhos de renda está enganado. Se o candidato comete asneiras, que se diga; se há provas de ladroagem, que se denuncie.
Proposta não quer dizer só desfile de promessas e números, geralmente embalados com jingles melodiosos e cenas emotivas.Também quer significar capacidade de as realizar e, nesse caso, a demonstração da força e da fragilidade dos perfis é pertinente. Como ensina Maquiavel, pode-se conquistar o povo de vários modos, dos quais não se pode dar uma regra certa, pois variam conforme a situação. O importante é ter o povo como aliado. O ataque pode ser um elemento.
É claro que o tempo de exposição na mídia também tem um valor. Mas o valor é relativo. O melhor programa não é, necessariamente, o que ocupa mais espaço, mas aquele que utiliza melhor o tempo disponível. Nesse caso, Lula está se saindo melhor, pois tem um programa mais redondo e menos discursivo.
O candidato fala o suficiente para preencher as expectativas, diferentemente de Serra, que fala muito, e de Ciro, que parece estar querendo tirar a desvantagem de espaço falando aos borbotões e com trejeitos que acabam criando uma coreografia estranha à altura da sobrancelha. Se Lula está quadras adiante, é porque aprendeu a lição maquiavélica de que o "príncipe deve ser ponderado em seu pensamento e ação, não ter medo de si mesmo e proceder de forma equilibrada, com prudência e humanidade, para que a excessiva confiança o faça intolerável". Até o salto alto do PT é diminuído.
O segundo turno está esperando os dois perfis mais confiáveis. Na química da confiabilidade, entram os componentes da história pessoal e valores como experiência, coerência, honestidade, capacidade de interpretar o tipo de mudança que se quer e de sentir o cheiro das ruas. Se é verdade que parcela expressiva do eleitorado pode mudar o voto, com pesquisas indicando que esse índice se aproxima dos 50% do eleitorado, e levando em consideração que São Paulo, Minas e Rio de Janeiro abrigam os maiores contingentes orgânicos (de critérios seletivos racionais) e inorgânicos (de critérios seletivos emotivos) do país, a conclusão parece cristalina: o palco da decisão é aqui.
Caso Ciro continue a cair em mais duas pesquisas, poderá se defrontar com um fenômeno muito comum em pleito eleitoral: o balão muito cheio, sem calibragem do ponto de equilíbrio, pode furar.



Gaudêncio Torquato, 56, jornalista, é professor titular aposentado de comunicação política da USP e consultor político.




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