São Paulo, segunda-feira, 02 de outubro de 2006

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A centralidade da política

MARCELO COUTINHO


Os progressistas de ontem e os conservadores de sempre talvez não estejam prontos para o que a democracia significa na prática


A IMPORTÂNCIA da política para a democracia e a solução de problemas transcende a discussão sobre arranjos institucionais específicos. Fundamentalmente, ela reside na sua disposição de transformar a sociedade naquilo que ela própria almeja, a partir da formulação e cumprimento de agendas baseadas na galvanização de apoios e na difusão de ideais. Nenhuma decisão de agenda em torno da integração regional, desenvolvimento, segurança e inclusão social, por exemplo, pode prescindir da política, sob pena de fracassar ou mesmo pôr em risco a natureza do regime democrático.
A despeito das tentativas de transformar tudo em uma questão de técnica, a verdade é que economia e política são indissociáveis. Não há como separá-las, a não ser para fins analíticos. Qualquer decisão técnica e econômica é precedida, direta ou indiretamente, por uma decisão política.
Não há realidade que escape a isso, ainda que ideologias liberais e burocráticas queiram fazer a sociedade acreditar no contrário.
No mundo moderno, desenvolvem-se dois processos concomitantes e atrelados ao capitalismo que conspiram contra a política democrática. O primeiro deles é o que Max Weber chamou de burocratização da política -o protagonismo assumido pela burocracia em detrimento da inovação.
O segundo é a liberalização da economia, cujos efeitos nocivos à sociedade foram salientados em "A Grande Transformação", de Karl Polanyi.
Esses dois processos de desvalorização da política se encontraram no fim do século 20 de uma maneira aguda em praticamente todo o planeta, mas em particular na América do Sul, onde houve o predomínio das lógicas de mercado e tecnocráticas.
Isso, somado ao desgaste dos políticos e ao desapontamento popular com as políticas adotadas -que, por anos, não lograram reverter um quadro social excludente e altamente assimétrico na região-, tornou a política secundária, ou mesmo danosa.
Uma vez que a democracia diminui na medida em que a política se retrai e que a superação dos desafios sul-americanos passa obrigatoriamente pela conciliação de interesses e valores sociais, a revalorização da política se constitui na maior bandeira progressista neste início de novo século.
As gerações hoje acima dos 40 anos deixaram como herança aos mais jovens um Estado democrático esvaziado: um Estado potencialmente mais acessível, livre e participativo, o que representa, sem dúvida, um enorme avanço; porém, um Estado também menos capaz, financeiramente quebrado e impotente diante do baixo crescimento econômico, que já se arrasta por mais de duas décadas e, com isso, tem desperdiçado grande parte do potencial criativo e produtivo da juventude.
Mas o paradoxo entre desvalorização e centralidade da política só pode mesmo ser resolvido pelo aprofundamento da democracia e com a aproximação entre o mundo dos mercados, mais globalizado e interdependente, e o mundo das ruas, das identidades locais, dos movimentos sociais e excluídos.
Essa e outras questões estão fora do debate eleitoral porque, tal como as novas gerações, o voto, aparentemente, também perdeu densidade política.
Em contraste com a década de 90, é preciso dar vazão à história, deixá-la evoluir pela democracia até as suas últimas conseqüências, que se configuram numa sociedade mais aberta e menos desigual.
Os progressistas de ontem e os conservadores de sempre talvez não estejam ambos, afinal de contas, preparados para o que a democracia significa na prática. Nesse caso, caberá às novas gerações inovar e promover mudanças, liderando a retomada da política sobre a apatia, o tecnicismo, a burocracia e o vazio moral dos mercados, pois, antes da crise política, vivemos uma política em crise.
Algumas lideranças na região, por outro lado, parecem ignorar os condicionamentos sistêmicos, caindo, assim, no extremo oposto do esvaziamento político ao pretender substituir a ética da responsabilidade pela ética da convicção, seja por oportunidade, seja por despreparo ou seja por sectarismo.
Apenas a política pode alterar a matriz de valores do capitalismo, tornando-a mais compatível com o patamar civilizatório contemporâneo. Mas isso não justifica o retorno de comportamentos e ideologias retrógradas.
Nesse sentido, mais importante do que saber quem governará o atraso é reconhecer que movimentos e conjunto de forças podem nos tirar dele.

MARCELO COUTINHO , doutor em ciência política, é coordenador do Observatório Político Sul-Americano do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro).


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