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São Paulo, quinta-feira, 03 de julho de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

Presidente deslumbrado

Quando o general João Baptista Figueiredo foi indicado para a sucessão do general Geisel na Presidência da República, deflagrou-se uma intensa campanha de propaganda destinada a tornar o "candidato" conhecido e popular. A eleição era indireta, mas o clima de abertura política recomendava o esforço para seduzir uma opinião pública cada vez mais indócil.
Ora, o general Figueiredo era pessoa pouco indicada para exercer a função. Somente o desejo de Geisel e de Golbery de tutelar o sucessor explica que a escolha tenha recaído sobre ele, que passou longos anos no Planalto sem aprender (nem esquecer...) quase nada. Figueiredo era inepto, inábil, bronco e boçal. Essas qualidades, na alquimia publicitária, foram convertidas em "franqueza" e "simplicidade".
Infelizmente, a conduta pessoal do presidente Lula traz ecos daquele seu antecessor. Na hipnose coletiva que se seguiu à eleição e que tolheu todo espírito de crítica, Lula foi apresentado como autêntico líder popular, como figura histórica que, respaldada num partido de massas organizado, romperia o círculo de ferro das "elites", como dizia Collor, em torno do poder.
Tudo isso é verdade, mas nem toda a verdade. O fato de Lula ser um caso raríssimo de político de extração popular que se manteve fiel à origem e a um partido programático não o torna imune à crítica. Sobretudo por parte da imprensa, cuja função de utilidade pública é problematizar, interpelar, incomodar os governantes, em especial enquanto são populares.
Lula foi, sem dúvida, vítima de preconceito. A noção de que alguém sem diploma universitário não poderia ocupar a Presidência revela uma percepção estreita, beletrista e obsoleta sobre o exercício do poder. Demorou para que a maioria do eleitorado se convencesse disso. E, quando essa mudança ocorreu, demos mais um passo para ampliar a democracia.
Então o preconceito passou a operar com sinal invertido. Diante da iminência de sua vitória, Lula encarnou o malandro da literatura popular, mais esperto que os espertos, capaz de dar um nó nos figurões da alta roda. O mesmo sentimento que o repudiava por ser "povo" passou a enaltecê-lo por ser vitorioso, numa versão sutil, inconsciente, da "lei de Gérson".
A lacuna escolar é uma adversidade que Lula venceu por seus méritos, que são muitos. Mas é evidente que não pode ser convertida em virtude, sob pena de dizermos às crianças: estudar é ruim, conhecer é um defeito, saber mais nos torna impuros ou corrompidos. Lula poderia ter se preparado nos últimos 20 anos, quando teve tempo e condições para tanto, mas não o fez.
Do primeiro líder popular a atingir o Planalto, esperava-se que reconhecesse tais limitações, não que as transformasse em apanágio. Esperava-se também que não se deixasse deslumbrar por jóias ou manicures, e que o êxito -fugaz como todo sucesso- não lhe subisse à cabeça. Algum outro poderia ser uma espécie de Figueiredo, mas que Lula esteja a caminho disso é mais uma ironia e mais uma decepção.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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