UOL




São Paulo, quinta-feira, 03 de julho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

A constitucionalidade da emenda

MICHEL TEMER

Tenho sustentado , baseado no instituto do ato jurídico perfeito, a tese da impossibilidade de tributar os atuais inativos. Disse até que a simples invocação do direito adquirido não seria suficiente para impedir a cobrança da contribuição, já que se adquire o direito à aposentadoria pelo decurso de prazo temporal, mas não se adquire o direito à imunidade após a aposentação. Ao que me parece, apenas aquele argumento tem sido levado ao Supremo Tribunal Federal. O argumento do ato jurídico perfeito, entretanto, é o que impede a cobrança.
Aqueles que sustentam tese contrária invocam, contudo, outro argumento: o instrumento legislativo que não pode alterar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada é a lei. E não emenda à Constituição, que, em sua opinião, tudo pode modificar. Impõe-se, por isso, saber qual é a natureza jurídica da emenda constitucional. É espécie normativa não classificável como "lei"? É lei no sentido lato do termo? A resposta a tais indagações implica reflexão sobre o conceito de Constituição, na medida em que esta assim se demonstra, porque objetiva a estruturar, a "constituir" o Estado. A Constituição é a "Lei Maior", a "Lei Magna" a que aludem os doutrinadores. A partir desse conceito, procurarei desenvolver uma argumentação sobre o tema.
Primeiro, cabe observar que tais expressões passam a ser sinônimas do vocábulo "Constituição", quando, rigorosamente, haveria de ser o contrário. Tanto a Constituição é Lei Maior que todos os demais atos normativos não podem contrariá-la. Daí o instrumento do "controle da constitucionalidade", que nada mais é do que a verificação da compatibilidade da "lei menor com a Lei Maior". Se a Constituição é "Lei" Maior, só projeto de lei, que, no caso, é "menor" (por estar subordinado aos preceitos maiores), poderá modificá-la. Somente lei modifica ou revoga lei, ainda que seja o caso da Lei Maior.
Como se trata, entretanto, de modificação da lei superior, o processo de sua produção é diferenciado. Estabelecem-se certas dificuldades procedimentais não encontráveis nas situações de produção de leis comuns. Iniciativa de dois terços de deputados ou senadores, votação em dois turnos, na Câmara e no Senado, aprovação por maioria qualificada de três quintos dos votos de cada Casa Legislativa são exigências reveladoras da importância dessa espécie normativa, inexigíveis no caso das leis "menores". Daí por que se a denomina, didaticamente, emenda à Constituição: pela singela razão de que, por seu intermédio, objetiva-se a modificação estrutural do Estado brasileiro.


Nada e ninguém pode se sobrepor à Constituição, lei maior emanada da soberania popular


As espécies normativas obedecem ao critério de precisão da linguagem para que as pessoas possam se comunicar. Por isso, uma espécie normativa é rotulada de lei ordinária; e a outra, de lei complementar. Tudo para que o nosso interlocutor saiba que a primeira é aprovável por maioria "menor" (maioria simples) e a outra, por maioria "mais ampla" (maioria absoluta). Outra espécie normativa é chamada de decreto legislativo, que, no dizer de Pontes de Miranda, é a "lei que não demanda sanção do presidente da República". Outra se chama resolução, que é a lei que veicula o trato de competências privativas das Casas do Congresso Nacional. Assim também é a emenda à Constituição. É lei. Especialíssima, como destacado, porque visa modificar a Constituição.
Tudo o que se disse busca ressaltar a expressão "lei" do artigo 5º, parágrafo XXXVI, que é usada em seu sentido amplo, compreendendo todas as espécies normativas do artigo 59 da Constituição Federal. Toda essa interpretação sistêmica é avalizada literalmente pela Constituição. No seu artigo 102, I, "a", está dito que compete ao STF processar e julgar, originariamente, a ação direta de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual e a ação declaratória de constitucionalidade de lei ou ato normativo federal. Não está determinada a competência para julgar a inconstitucionalidade ou constitucionalidade de emenda à Constituição e ninguém questiona a possibilidade de ações declaratórias em relação às emendas constitucionais. Há centenas delas.
Quando esse artigo alude à "lei", portanto, está mencionando todas as espécies catalogadas no artigo 59 da Lei Magna; quando menciona ato normativo, está se referindo a resoluções dos tribunais e até mesmo a decretos executivos ou portarias. Basta que veicule normas gerais e abstratas, de acordo com o que já decidiu o STF. Pensar de outra maneira seria imaginar que o poder constituinte originário está em permanente atividade, sendo o seu veículo a emenda constitucional, que tudo poderia alterar, o que é um equívoco interpretativo gravíssimo. Ficaria desequilibrada a organização social pela instabilidade da ordem jurídica. Nada e ninguém pode se sobrepor à Constituição, lei maior emanada da soberania popular, que estabeleceu, ao se manifestar, as regras permanentes do "jogo" social.
Assim, seja pela interpretação sistemática, seja pela interpretação literal, as emendas constitucionais (leis no sentido lato) submetem-se ao controle da constitucionalidade no STF. Que é para onde deve ir a emenda constitucional que tributará os inativos, se aprovada.

Michel Temer, 62, advogado e professor de direito constitucional da PUC-SP, é deputado federal pelo PMDB-SP e presidente nacional do partido. Foi secretário da Segurança Pública (governos Montoro e Fleury) e de Governo (gestão Fleury) do Estado de São Paulo.


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Jorge Bornhausen: O boné da insensatez

Próximo Texto: Painel do leitor
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.