São Paulo, segunda-feira, 03 de dezembro de 2007

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RUY CASTRO

Horror via iPod

RIO DE JANEIRO - Há alguns meses, um amigo de 80 anos sofreu um grave derrame hemorrágico, com complicações respiratórias. Desde então, entrou e saiu de coma, mas continua internado num hospital de sua cidade, a 1.000 km do Rio, imóvel, sem fala, entubado e, quase sempre, inconsciente. Outro dia, reagindo a um estímulo, conseguiu piscar uma pálpebra, para mostrar aos filhos e netos que ainda havia esperança.
Os netos, sabendo de seu amor pela música, acoplaram-lhe aos ouvidos um iPod com dezenas de horas de música, na expectativa de que seu cérebro se sentisse estimulado e voltasse a comandar o corpo. Não sei se está dando resultado.
O que sei é que, sendo um homem nascido na década de 1920, meu amigo deve ser fã de Orlando Silva, Dircinha Batista, Lucio Alves ou, quem sabe, Bing Crosby, Benny Goodman, Ella Fitzgerald. Terão sido as gravações desses astros de sua juventude que eles puseram no iPod? Ou, quem sabe, os netos se guiaram pelo próprio gosto e o estão submetendo a Britney Spears, Skank ou Detonautas? Para mim, ambas as hipóteses são igualmente sinônimo de tortura.
Eu me pergunto se mesmo a melhor música do mundo, ou aquela com que a pessoa mais se identifica, é agradável de se ouvir sem parar, pela eternidade, e mais ainda quando o sujeito está incapacitado de se desplugar ou de manifestar de alguma forma que gostaria de passar o resto de seus dias em silêncio. Como descrever o martírio mudo de quem está sendo invadido por sons que não pediu para escutar e que, para ele, podem ter se convertido em horror?
Outro amigo me escreveu, maravilhado, contando que ganhou "um HD externo de 500 gigas de memória, contendo 48 mil músicas". Achei graça e dei-lhe os parabéns. Mas ninguém se atreva a me presentear com tal monstruosidade.


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