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RUY CASTRO
Horror via iPod
RIO DE JANEIRO - Há alguns
meses, um amigo de 80 anos sofreu
um grave derrame hemorrágico,
com complicações respiratórias.
Desde então, entrou e saiu de coma,
mas continua internado num hospital de sua cidade, a 1.000 km do
Rio, imóvel, sem fala, entubado e,
quase sempre, inconsciente. Outro
dia, reagindo a um estímulo, conseguiu piscar uma pálpebra, para
mostrar aos filhos e netos que ainda
havia esperança.
Os netos, sabendo de seu amor
pela música, acoplaram-lhe aos ouvidos um iPod com dezenas de horas de música, na expectativa de
que seu cérebro se sentisse estimulado e voltasse a comandar o corpo.
Não sei se está dando resultado.
O que sei é que, sendo um homem
nascido na década de 1920, meu
amigo deve ser fã de Orlando Silva,
Dircinha Batista, Lucio Alves ou,
quem sabe, Bing Crosby, Benny
Goodman, Ella Fitzgerald. Terão sido as gravações desses astros de sua
juventude que eles puseram no
iPod? Ou, quem sabe, os netos se
guiaram pelo próprio gosto e o estão submetendo a Britney Spears,
Skank ou Detonautas? Para mim,
ambas as hipóteses são igualmente
sinônimo de tortura.
Eu me pergunto se mesmo a melhor música do mundo, ou aquela
com que a pessoa mais se identifica,
é agradável de se ouvir sem parar,
pela eternidade, e mais ainda quando o sujeito está incapacitado de se
desplugar ou de manifestar de alguma forma que gostaria de passar o
resto de seus dias em silêncio. Como descrever o martírio mudo de
quem está sendo invadido por sons
que não pediu para escutar e que,
para ele, podem ter se convertido
em horror?
Outro amigo me escreveu, maravilhado, contando que ganhou "um
HD externo de 500 gigas de memória, contendo 48 mil músicas".
Achei graça e dei-lhe os parabéns.
Mas ninguém se atreva a me presentear com tal monstruosidade.
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