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Planejamento familiar para pobres
HÉLIO BICUDO
Para muitos, os pobres deveriam estar sujeitos ao poder do Estado onisciente. O planejamento familiar, porém, deve ser espontâneo
O JORNAL "O Estado de S. Paulo" do último dia 2/12, em seu
caderno de cultura, estampou
manchete em que se dizia frase atribuída ao médico Drauzio Varella:
"Brasil: controle familiar urgente".
Foi, aliás, o cabeçalho da entrevista
por ele concedida ao periódico.
Ao nos depararmos com semelhante afirmativa, seguida de consideração, pelo mesmo médico, de que a
maior violência é "condenar os pobres a ter filhos que não conseguirão
sustentar", tínhamos a impressão de
que a entrevista trataria do assunto
com profundidade, dizendo o porquê
dessas afirmativas que vêm carregadas de preconceito, pois a pobreza
não é em si mesma causa da violência,
presumida nas palavras do entrevistado. Sobre planejamento familiar,
que não é a mesma coisa que controle
de natalidade, não se estendem as palavras do médico, num exame do que
deva ser planejamento familiar para
as classes populares.
Ora, é por demais sabido que os índices de natalidade no Brasil vêm
caindo vertiginosamente. De 4% a 5%
há cerca de 15 anos, temos hoje uma
taxa de crescimento que não vai além
dos 2%, nem sequer alcançando 3%.
Nos segmentos A e B da sociedade,
os casais não têm filhos ou não têm
mais que um ou dois. Se as pessoas
mais pobres seguissem na mesma trilha, teríamos, o que é insustentável
para um país de dimensões continentais em desenvolvimento, taxas negativas de natalidade e, em conseqüência, um país envelhecido, sem "élan"
para o crescimento social, cultural e
econômico.
De notar que tais considerações retomam, praticamente, as conclusões
do dito relatório Kissinger, em que estava escrito que "as atuais tendências
populacionais" dos países em desenvolvimento poderiam causar sérios
problemas à segurança e aos interesses externos dos EUA. Assumia-se a
tese da "explosão demográfica" hoje
defendida pelos neomalthusianos.
Sob esse aspecto, Paul Ehrlich, da
Universidade Stanford, em seu livro
"A Bomba Demográfica" já afirmava,
há mais de 40 anos, que, na década de
70 do século 20, o mundo sofreria
uma grande fome, com a morte de
centenas de milhões de pessoas.
Aconselhava-se, então, para derrubar o crescimento demográfico dos
países pobres, o aborto, a laqueadura
de trompas e a vasectomia. Isso porque a catástrofe anunciada sobre a
"bomba demográfica" iria impedir o
crescimento sustentável (diríamos
hoje) dos homens no planeta Terra.
Isso não aconteceu -e, na verdade,
não falta comida para todos. O que
falta é a distribuição equânime dos
bens da Terra ao conjunto dos povos.
Se a riqueza consumida para a produção de armamentos fosse orientada para prover o bem-estar dos habitantes do planeta, não teríamos fome,
mas um desenvolvimento mais consentâneo com a dignidade do homem.
O planejamento familiar, repita-se,
não é só redução da natalidade, mas
depende de condições de saúde e de
educação a que se submete uma sociedade, em que a solidariedade deve
ser o fundamento da justiça e da paz.
No Brasil, fala-se em "planejamento familiar" sem que se considere a
pessoa humana enquanto tal. A verdade é que, sendo pobre, está sujeita,
na concepção de muitos, ao poder de
um Estado onisciente, que sabe o que
é bom ou mau para os governados.
O planejamento familiar deve ser
espontâneo. Os casais, dentro das
normas que regem o Estado democrático, devem fazer livremente suas
escolhas -e, se não as fazem com racionalidade, isso se deve ao fato de
que esse mesmo Estado não abre, para eles, as portas do conhecimento.
Nesse sentido, não pode ser admitida qualquer barganha, a não ser que
mergulhemos no Estado do "Grande
Irmão" descrito por George Orwell
em seu "1984".
É preciso, nesse campo, não nos seduzirmos pela falácia da "bomba demográfica", para encarar o problema
com mais humildade, respeitando a
pessoa humana nos seus direitos fundamentais e nos seus anseios de realização pessoal, para que suas decisões,
às quais se deve dar o empenho do saber distinguir o que é bom e o que não
é, não se sujeitem às restrições destrutivas que se inserem nas propostas
de um "planejamento" que dê tranqüilidade aos ricos e poderosos.
HÉLIO BICUDO, 85, advogado, é presidente da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americanos). Foi vice-prefeito do município de São Paulo (gestão Marta Suplicy), deputado federal
pelo PT-SP (1990-94 e 1995-98).
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