São Paulo, sexta-feira, 04 de janeiro de 2008

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Planejamento familiar para pobres

HÉLIO BICUDO
Para muitos, os pobres deveriam estar sujeitos ao poder do Estado onisciente. O planejamento familiar, porém, deve ser espontâneo

O JORNAL "O Estado de S. Paulo" do último dia 2/12, em seu caderno de cultura, estampou manchete em que se dizia frase atribuída ao médico Drauzio Varella: "Brasil: controle familiar urgente". Foi, aliás, o cabeçalho da entrevista por ele concedida ao periódico.
Ao nos depararmos com semelhante afirmativa, seguida de consideração, pelo mesmo médico, de que a maior violência é "condenar os pobres a ter filhos que não conseguirão sustentar", tínhamos a impressão de que a entrevista trataria do assunto com profundidade, dizendo o porquê dessas afirmativas que vêm carregadas de preconceito, pois a pobreza não é em si mesma causa da violência, presumida nas palavras do entrevistado. Sobre planejamento familiar, que não é a mesma coisa que controle de natalidade, não se estendem as palavras do médico, num exame do que deva ser planejamento familiar para as classes populares.
Ora, é por demais sabido que os índices de natalidade no Brasil vêm caindo vertiginosamente. De 4% a 5% há cerca de 15 anos, temos hoje uma taxa de crescimento que não vai além dos 2%, nem sequer alcançando 3%.
Nos segmentos A e B da sociedade, os casais não têm filhos ou não têm mais que um ou dois. Se as pessoas mais pobres seguissem na mesma trilha, teríamos, o que é insustentável para um país de dimensões continentais em desenvolvimento, taxas negativas de natalidade e, em conseqüência, um país envelhecido, sem "élan" para o crescimento social, cultural e econômico.
De notar que tais considerações retomam, praticamente, as conclusões do dito relatório Kissinger, em que estava escrito que "as atuais tendências populacionais" dos países em desenvolvimento poderiam causar sérios problemas à segurança e aos interesses externos dos EUA. Assumia-se a tese da "explosão demográfica" hoje defendida pelos neomalthusianos.
Sob esse aspecto, Paul Ehrlich, da Universidade Stanford, em seu livro "A Bomba Demográfica" já afirmava, há mais de 40 anos, que, na década de 70 do século 20, o mundo sofreria uma grande fome, com a morte de centenas de milhões de pessoas.
Aconselhava-se, então, para derrubar o crescimento demográfico dos países pobres, o aborto, a laqueadura de trompas e a vasectomia. Isso porque a catástrofe anunciada sobre a "bomba demográfica" iria impedir o crescimento sustentável (diríamos hoje) dos homens no planeta Terra.
Isso não aconteceu -e, na verdade, não falta comida para todos. O que falta é a distribuição equânime dos bens da Terra ao conjunto dos povos. Se a riqueza consumida para a produção de armamentos fosse orientada para prover o bem-estar dos habitantes do planeta, não teríamos fome, mas um desenvolvimento mais consentâneo com a dignidade do homem.
O planejamento familiar, repita-se, não é só redução da natalidade, mas depende de condições de saúde e de educação a que se submete uma sociedade, em que a solidariedade deve ser o fundamento da justiça e da paz.
No Brasil, fala-se em "planejamento familiar" sem que se considere a pessoa humana enquanto tal. A verdade é que, sendo pobre, está sujeita, na concepção de muitos, ao poder de um Estado onisciente, que sabe o que é bom ou mau para os governados.
O planejamento familiar deve ser espontâneo. Os casais, dentro das normas que regem o Estado democrático, devem fazer livremente suas escolhas -e, se não as fazem com racionalidade, isso se deve ao fato de que esse mesmo Estado não abre, para eles, as portas do conhecimento.
Nesse sentido, não pode ser admitida qualquer barganha, a não ser que mergulhemos no Estado do "Grande Irmão" descrito por George Orwell em seu "1984".
É preciso, nesse campo, não nos seduzirmos pela falácia da "bomba demográfica", para encarar o problema com mais humildade, respeitando a pessoa humana nos seus direitos fundamentais e nos seus anseios de realização pessoal, para que suas decisões, às quais se deve dar o empenho do saber distinguir o que é bom e o que não é, não se sujeitem às restrições destrutivas que se inserem nas propostas de um "planejamento" que dê tranqüilidade aos ricos e poderosos.


HÉLIO BICUDO, 85, advogado, é presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da OEA (Organização dos Estados Americanos). Foi vice-prefeito do município de São Paulo (gestão Marta Suplicy), deputado federal pelo PT-SP (1990-94 e 1995-98).

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