São Paulo, quarta-feira, 04 de abril de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Certezas e dúvidas

BORIS FAUSTO

A vida pode ser uma experiência maravilhosa, mas a angústia da finitude acompanha os não-crentes de todo gênero

NESSES TEMPOS de resoluções controversas do sínodo do Vaticano, de visita do papa ao Brasil, vale a pena ler o livro do filósofo francês Luc Ferry, "Aprender a Viver" (Objetiva, 2006), uma abertura para o leigo trilhar os caminhos difíceis da filosofia. Embora quase sempre alta vendagem não seja sinônimo de qualidade, nesse caso há uma coincidência e é bom que o livro tenha alcançado vendas expressivas em vários países, inclusive no Brasil.
Na sua digressão sintética a respeito do que é filosofia, Ferry diz que a "equação mortalidade + consciência de ser mortal é um coquetel que carrega em germe a fonte de todas as interrogações filosóficas". De fato, a precariedade da existência, a finitude, o temor da morte são temas existenciais dos quais não creio que possamos fugir.
Mas essas interrogações geradoras de angústia encontraram uma resposta altamente reconfortante no cristianismo, a tal ponto que ela parece ser uma das razões da sobrevivência espiritual da doutrina e das instituições eclesiásticas no mundo ocidental, admitidas suas vicissitudes em séculos mais recentes.
Falo aqui de uma resposta no âmbito da cultura ocidental, sem estendê-la a outras áreas, nas quais o islamismo ou o budismo abrangem milhões e milhões de adeptos. Com essa ressalva, e em poucas palavras, para os que têm fé e seguem os mandamentos de Deus, na ótica do cristianismo, os problemas da finitude não existem. Pelo contrário, a passagem por este vale de lágrimas e de alegrias, mas sempre passagem, abre para os fiéis o caminho da vida eterna.
Ferry mostra como o cristianismo difere de doutrinas filosóficas que tomam a ordem cósmica como modelo, bem representadas pelos estóicos gregos, cuja influência foi além de sua época. Segundo os estóicos, o sábio poderá, graças a um justo exercício do pensamento e da ação, alcançar certa forma de imortalidade ou, pelo menos, de eternidade. Com certeza ele vai morrer, mas sua morte representará uma transformação de um estado em outro, no seio de um universo cuja perfeição possui uma estabilidade absoluta e, por isso mesmo, em certo sentido, divina.
Bela doutrina, precária resposta para o problema da finitude, diversa da que encontrará o cristianismo, embora haja pontos de contato entre as duas correntes. De fato, a vinda de Cristo revelou plenamente o caminho da salvação. O filho de Deus, integrante da Santíssima Trindade, fez-se homem, morreu na cruz por nós, redimindo nossos pecados, e ressuscitou, por fim, sob forma humana.
A insistência no corpo é reveladora, aliás, de como esse é um elemento complexo da doutrina cristã e, especialmente, da Igreja Católica. Mesmo na Idade Média, lembram os historiadores franceses Jacques Le Goff e Nicolas Truong, o corpo é o lugar de um paradoxo, pois a humanidade cristã repousa tanto no pecado original -transformado na Idade Média em pecado sexual- quanto na encarnação de Cristo.
Para a doutrina cristã, se seguirmos os mandamentos de Deus, alcançaremos a vida eterna, não sob a forma de uma integração no cosmos ou de uma iluminação. Podemos alcançá-la individualmente, em carne e osso, como Cristo ressuscitado mostrou.
Resta um sério problema. Tudo isso é uma questão de fé, essa fé que remove montanhas, mas não é interiorizada por milhões de pessoas. Para elas, a questão da finitude e da angústia da morte persiste e, mesmo entre os que têm fé, muitos "fraquejam" ao longo da vida.
Haveria uma resposta imanente para essa questão crucial, que não passe pela transcendência, por aquilo que vem de fora de nós, seja a ordem cósmica, seja o poder de Deus?
Não creio. Nem as respostas iluministas nem as pós-iluministas, como o humanismo secular proposto por Luc Ferry e outros filósofos da atualidade, me parecem convincentes. Em resumo, quem não aceita, por muitas razões, as respostas transcendentais, terá sempre dificuldade em aceitar as construções imanentes, ou seja, as nascidas do projeto humano.
A vida pode ser uma experiência maravilhosa, mas a angústia da finitude acompanha, assim, os não-crentes de todo gênero. Resta-lhes um trunfo valioso: a dúvida. Não a dúvida quanto ao caráter histórico das igrejas, das crenças e dos dogmas oficiais, mas a dúvida sobre o quanto sabemos do universo e da trajetória da existência humana, afastadas as convicções religiosas. Quando mais não fosse, essa atitude de colocar um ponto de interrogação nas questões ontológicas encerra uma significativa lição de humildade.



BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional) da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Onyx Lorenzoni: Motim com champanhe

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.