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Certezas e dúvidas
BORIS FAUSTO
A vida pode ser uma experiência maravilhosa, mas a angústia da finitude acompanha os não-crentes de todo gênero
NESSES TEMPOS de resoluções
controversas do sínodo do Vaticano, de visita do papa ao
Brasil, vale a pena ler o livro do filósofo francês Luc Ferry, "Aprender a Viver" (Objetiva, 2006), uma abertura
para o leigo trilhar os caminhos difíceis da filosofia. Embora quase sempre alta vendagem não seja sinônimo
de qualidade, nesse caso há uma coincidência e é bom que o livro tenha alcançado vendas expressivas em vários países, inclusive no Brasil.
Na sua digressão sintética a respeito do que é filosofia, Ferry diz que a
"equação mortalidade + consciência
de ser mortal é um coquetel que carrega em germe a fonte de todas as interrogações filosóficas". De fato, a
precariedade da existência, a finitude, o temor da morte são temas existenciais dos quais não creio que possamos fugir.
Mas essas interrogações geradoras
de angústia encontraram uma resposta altamente reconfortante no
cristianismo, a tal ponto que ela parece ser uma das razões da sobrevivência espiritual da doutrina e das instituições eclesiásticas no mundo ocidental, admitidas suas vicissitudes
em séculos mais recentes.
Falo aqui de uma resposta no âmbito da cultura ocidental, sem estendê-la a outras áreas, nas quais o islamismo ou o budismo abrangem milhões
e milhões de adeptos. Com essa ressalva, e em poucas palavras, para os
que têm fé e seguem os mandamentos de Deus, na ótica do cristianismo,
os problemas da finitude não existem. Pelo contrário, a passagem por
este vale de lágrimas e de alegrias,
mas sempre passagem, abre para os
fiéis o caminho da vida eterna.
Ferry mostra como o cristianismo
difere de doutrinas filosóficas que tomam a ordem cósmica como modelo,
bem representadas pelos estóicos
gregos, cuja influência foi além de sua
época. Segundo os estóicos, o sábio
poderá, graças a um justo exercício
do pensamento e da ação, alcançar
certa forma de imortalidade ou, pelo
menos, de eternidade. Com certeza
ele vai morrer, mas sua morte representará uma transformação de um
estado em outro, no seio de um universo cuja perfeição possui uma estabilidade absoluta e, por isso mesmo,
em certo sentido, divina.
Bela doutrina, precária resposta
para o problema da finitude, diversa
da que encontrará o cristianismo,
embora haja pontos de contato entre
as duas correntes. De fato, a vinda de
Cristo revelou plenamente o caminho da salvação. O filho de Deus, integrante da Santíssima Trindade, fez-se
homem, morreu na cruz por nós, redimindo nossos pecados, e ressuscitou, por fim, sob forma humana.
A insistência no corpo é reveladora,
aliás, de como esse é um elemento
complexo da doutrina cristã e, especialmente, da Igreja Católica. Mesmo
na Idade Média, lembram os historiadores franceses Jacques Le Goff e Nicolas Truong, o corpo é o lugar de um
paradoxo, pois a humanidade cristã
repousa tanto no pecado original
-transformado na Idade Média em
pecado sexual- quanto na encarnação de Cristo.
Para a doutrina cristã, se seguirmos
os mandamentos de Deus, alcançaremos a vida eterna, não sob a forma de
uma integração no cosmos ou de uma
iluminação. Podemos alcançá-la individualmente, em carne e osso, como
Cristo ressuscitado mostrou.
Resta um sério problema. Tudo isso é uma questão de fé, essa fé que remove montanhas, mas não é interiorizada por milhões de pessoas. Para
elas, a questão da finitude e da angústia da morte persiste e, mesmo entre
os que têm fé, muitos "fraquejam" ao
longo da vida.
Haveria uma resposta imanente
para essa questão crucial, que não
passe pela transcendência, por aquilo
que vem de fora de nós, seja a ordem
cósmica, seja o poder de Deus?
Não creio. Nem as respostas iluministas nem as pós-iluministas, como
o humanismo secular proposto por
Luc Ferry e outros filósofos da atualidade, me parecem convincentes. Em
resumo, quem não aceita, por muitas
razões, as respostas transcendentais,
terá sempre dificuldade em aceitar as
construções imanentes, ou seja, as
nascidas do projeto humano.
A vida pode ser uma experiência
maravilhosa, mas a angústia da finitude acompanha, assim, os não-crentes de todo gênero. Resta-lhes um
trunfo valioso: a dúvida. Não a dúvida
quanto ao caráter histórico das igrejas, das crenças e dos dogmas oficiais,
mas a dúvida sobre o quanto sabemos
do universo e da trajetória da existência humana, afastadas as convicções
religiosas. Quando mais não fosse, essa atitude de colocar um ponto de interrogação nas questões ontológicas
encerra uma significativa lição de humildade.
BORIS FAUSTO, historiador, é presidente do Conselho
Acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional)
da USP. É autor de, entre outras obras, "A Revolução de
30" (Companhia das Letras).
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