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São Paulo, quarta-feira, 04 de junho de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

À prefeita de São Paulo

JOÃO SILVÉRIO TREVISAN

Prezada senhora Marta Suplicy, nos dois anos e meio do seu governo não se instaurou nenhum canal com a comunidade homossexual, que votou maciçamente na senhora. Por isso, enquanto membro dessa comunidade, sou obrigado a apontar algumas incongruências no seu trato conosco.
A senhora tem um passado de propostas corajosas em relação às questões homossexuais, especialmente na luta solitária pela parceria civil registrada. Sua atitude inovadora no passado nos encheu de dignidade. Também é verdade que a senhora soube usar bem o prestígio adquirido: graças à nossa luta, projetou-se como a parlamentar mais ousada do Brasil. Quando de sua eleição para a prefeitura, criamos legítimas expectativas de políticas públicas inéditas visando os direitos homossexuais. No entanto, parece, trata-se de duas pessoas: aquela Marta Suplicy do Congresso Nacional e esta, prefeita de São Paulo.
A questão não é que a senhora nos privilegie, mas simplesmente que governe também para cidadãos(ãs) homossexuais de São Paulo. O que pareceria óbvio não está ocorrendo. Logo no começo do seu mandato, a senhora se recusou a criar uma Coordenadoria Homossexual na cidade, a exemplo do que já existe para mulheres, negros e adolescentes. Por duas vezes, respondeu ao vereador petista Carlos Giannazi, autor do projeto de lei de criação desse órgão, que iria resolver o assunto depois. Mas, até hoje, não houve nenhum sinal de políticas voltadas para nossa imensa população homossexual.
Em São Paulo, os grupos de direitos homossexuais não têm um local adequado para se reunirem, atenderem às demandas da população GLT e articularem as políticas homossexuais para o município. Urge um centro de convivência da comunidade homossexual. No centro de São Paulo, encontram-se centenas de edifícios vagos. Desde o começo de sua gestão, representantes homossexuais procuram órgãos municipais para propor a instalação do centro de convivência num desses prédios. Foram mandados de lá para cá, até esbarrarem na Subprefeitura da Sé, que alegou desconhecer os edifícios. Ora, essa conversa pra boi dormir mal dissimula a má vontade. E não é um caso isolado.
Em junho de 2002, mais de 15 organizações de várias áreas, lideradas pela Comissão de Direitos Humanos, realizaram na Câmara dos Vereadores um seminário visando planejar políticas homossexuais. Durante três dias, ocorreram palestras com especialistas, ao mesmo tempo em que diversos grupos de trabalho debateram problemas da comunidade homossexual nas áreas de saúde, trabalho, direitos e organização política. No final, aprovou-se um documento com as conclusões. Apesar de inúmeras tentativas, inclusive através do então vereador Ítalo Cardoso, líder do PT, até hoje a senhora não encontrou tempo para receber a comissão que lhe entregaria esse documento.


Não adianta ir à Parada do Orgulho Gay dizer palavras bonitas. Palavras uma vez por ano não bastam


E há a questão do Autorama, o mais antigo espaço de socialização gay de São Paulo, vinculado ao parque Ibirapuera. Há pouco, fomos informados, pela Secretaria do Meio Ambiente, de que num futuro próximo o Autorama será fechado em definitivo. Ironicamente, quem fez o comunicado foi um ex-líder homossexual, o mesmo que no ano passado lançou a esdrúxula idéia de transformar o Autorama num jardim gay, factóide visando alavancar sua malograda candidatura parlamentar. O Autorama, que resistiu à ditadura e às gestões conservadoras de Jânio Quadros, Maluf e Pitta, está sendo extinto na administração da sra. Marta Suplicy.
Para discutir esse e outros assuntos, vários grupos, entre os quais a Associação da Parada GLBT e o Núcleo de Gays e Lésbicas do PT, protocolaram no seu gabinete uma solicitação de audiência, há mais de dois meses. Até agora tal encontro não ocorreu. Por acaso, soube-se que o fechamento do Autorama foi adiado para depois de 22 junho, data da Parada do Orgulho Gay -senão a senhora prefeita seria vaiada, não é?
Se uma aliada da sua importância nos dá as costas, como chamar essa atitude? Traição? Vergonha de nós? Ou a senhora passou a achar, como tantos políticos de direita, que assuntos relacionados aos direitos homossexuais são de importância secundária? Se não pensa assim, é assim que tem agido. Por isso, chega a ser constrangedor constatar como a senhora, apenas sai de São Paulo, volta a ser aquela antiga Marta Suplicy arrojada e amiga de homossexuais. Basta lembrar da bronca que deu em Anthony Garotinho, então candidato à Presidência da República, por suas declarações homofóbicas. Não é oportunismo usar nossa luta só quando quer parecer moderna, em período eleitoral?
Pois bem, a senhora tem só mais um ano e meio de mandato. A continuar esse ritmo de descaso, para nós, homossexuais, sua gestão não terá sido diferente das gestões mais conservadoras de São Paulo. Não adianta ir à Parada do Orgulho Gay dizer palavras bonitas. Palavras uma vez por ano não bastam. Se não as transformar em ação, elas não significarão nada. E nós não estaremos fazendo campanha para sua reeleição.
Não é impunemente que um político dá banana aos seus aliados, sra. prefeita. Responderemos no mesmo tom, com uma admoestação: Otários, nunca mais.

João Silvério Trevisan, 58, escritor e roteirista, é autor de "Devassos no Paraíso" e "Ana em Veneza" (ambos pela ed. Record).


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