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CARLOS HEITOR CONY
"Cosa mentale"
RIO DE JANEIRO - Criaram a
lenda de que ele escrevia com rapidez capaz de fazer um romance em
11 dias e crônicas em cinco minutos.
Era em parte verdade, mas bastava
uma olhada superficial na sua produção para avaliar o grau de sua incontinência literária. Uns pelos outros, tudo o que vinha dele tinha o
sinal da pressa, até mesmo da afobação em ficar livre do compromisso com uma editora ou com um
jornal.
Com o tempo, ele se habituou a
receber a crítica, que era mais negativa do que positiva, mas não dava
muita bola para isso. Antes mesmo
de alguns políticos declararem que
se lixavam para a opinião pública,
ele continuava na dele, não sabendo
produzir nada a não ser a seu modo
e circunstância.
Até o dia em que uma amiga o viu
preocupado. Passara o dia fechado
em si mesmo, não queria nada, pediu que ela ficasse quietinha, o deixasse em paz. Paz que ele prolongou
até a tarde seguinte, quando teve de
enfrentar o computador e desovar a
matéria pedida pelo editor. Não
gastou mais de cinco minutos. A
amiga elogiou sua facilidade. Em
poucos minutos saíra uma crônica
que dava para o gasto.
Olhou com espanto para a amiga.
Ela contara apenas o tempo que ele
digitara o texto. Mas esquecera de
contar os dias, meses e anos que levara para chegar àquele ponto. Para
ser exata, ela deveria contar 50 e
tantos anos mais os cinco minutos
gastos na digitação.
E, como o tempo continuava a
passar, cada vez mais ele tinha de
dosar a rapidez da tarefa com a permanência dos assuntos que o preocupavam mais fundamente. Chegou a fazer uma espécie de tabela:
um dia inteiro para produzir uma
crônica, sua vida inteira para produzir um romance. Parafraseando
Leonardo da Vinci, ele descobriu
que viver também era uma "cosa
mentale".
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