São Paulo, terça-feira, 04 de agosto de 2009

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CARLOS HEITOR CONY

"Cosa mentale"

RIO DE JANEIRO - Criaram a lenda de que ele escrevia com rapidez capaz de fazer um romance em 11 dias e crônicas em cinco minutos. Era em parte verdade, mas bastava uma olhada superficial na sua produção para avaliar o grau de sua incontinência literária. Uns pelos outros, tudo o que vinha dele tinha o sinal da pressa, até mesmo da afobação em ficar livre do compromisso com uma editora ou com um jornal.
Com o tempo, ele se habituou a receber a crítica, que era mais negativa do que positiva, mas não dava muita bola para isso. Antes mesmo de alguns políticos declararem que se lixavam para a opinião pública, ele continuava na dele, não sabendo produzir nada a não ser a seu modo e circunstância.
Até o dia em que uma amiga o viu preocupado. Passara o dia fechado em si mesmo, não queria nada, pediu que ela ficasse quietinha, o deixasse em paz. Paz que ele prolongou até a tarde seguinte, quando teve de enfrentar o computador e desovar a matéria pedida pelo editor. Não gastou mais de cinco minutos. A amiga elogiou sua facilidade. Em poucos minutos saíra uma crônica que dava para o gasto.
Olhou com espanto para a amiga. Ela contara apenas o tempo que ele digitara o texto. Mas esquecera de contar os dias, meses e anos que levara para chegar àquele ponto. Para ser exata, ela deveria contar 50 e tantos anos mais os cinco minutos gastos na digitação.
E, como o tempo continuava a passar, cada vez mais ele tinha de dosar a rapidez da tarefa com a permanência dos assuntos que o preocupavam mais fundamente. Chegou a fazer uma espécie de tabela: um dia inteiro para produzir uma crônica, sua vida inteira para produzir um romance. Parafraseando Leonardo da Vinci, ele descobriu que viver também era uma "cosa mentale".


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