São Paulo, quarta-feira, 04 de dezembro de 2002

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CARLOS HEITOR CONY

O diálogo das jóias

RIO DE JANEIRO - Acho que já citei, há tempos, um diálogo do cinema francês dos anos 30, um filme dirigido por Julien Duvivier, com Jean Gabin no papel principal. No Brasil, teve o título de "O Demônio da Argélia". Sua locação foi toda realizada na casbá da capital argelina, ao tempo em que aquele país era colônia da França.
Uma turista elegante, coberta de jóias, visita aquele labirinto de ruas e de casas, conhece Pepê, uma espécie de Fernandinho Beira-Mar mais bem-sucedido, e se apaixona por ele. Paixão recíproca, pois o marginal, rei daquele submundo de droga, jogo e prostituição, tem a famosa nostalgia da virtude, da vida simples que levava em Paris, no metrô, nas quermesses de bairro, nos bistrôs onde tomava um "coup de rouge".
Fascinado pela mulher, Pepê pergunta o que ela fazia antes. A turista responde com outra pergunta: "Antes de quê?". O bandido acrescenta: "Antes das jóias". Ela responde: "Eu as desejava".
Há uma lenda na vida de Mozart, que, ao ouvir pela primeira vez o "Salve Regina" em gregoriano, teria decorado mentalmente todas as notas e compassos e dito para um amigo: "Eu trocaria toda a minha obra, tudo o que fiz, pela glória de fazer essa melodia simples e encantadora".
É evidente que o cronista está tão longe de ser um Mozart quanto da estrela Sirius. Nem nascendo mil vezes seria capaz de compor a mais banal das peças do gênio de Salzburgo. Mas, modestamente, ele teria prazer em trocar tudo o que escreveu -milhares de palavras ocas e sem sentido- pelo pequeno diálogo de um filme francês dos anos 30.
Revi esse filme outro dia na TV. Não é lá essas coisas, mas aquele encontro do bandido com a turista coberta de jóias me deu vontade de trocar de canal. Peguei um filme do Spielberg, com muita cor e com muita ação. E fiquei tranquilo: ainda tenho salvação. Há diálogos tão ruins como os meus.


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