São Paulo, segunda-feira, 04 de dezembro de 2006

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Subversão teocrática

ALDO PEREIRA


O consenso jurídico mais prudente continua sendo o de que não compete ao Estado arbitrar disputas filosóficas entre razão e fé


O PRINCÍPIO de separação entre Estado e igreja, instituído há mais de dois séculos nas constituições dos Estados Unidos e da França, prevalece na maioria dos países de cultura européia. A Constituição brasileira de 1988, nove vezes mais palavrosa que a francesa e 20 vezes mais que a estadunidense, também reafirma o postulado secularista. Mas, adiante, o contradiz.
O art. 19, inciso I, proíbe ao Estado estabelecer (oficializar) ou subvencionar cultos religiosos ou igrejas (congregações) "ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança (...)". Mas o parágrafo 1º do art. 210 determina: "O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental". Se custeado pelo governo, tal ensino não configura subvenção de "igrejas"?
A Lei de Diretrizes e Bases busca sanar essa contradição ao vedar, no art. 33, "quaisquer formas de proselitismo" no "ensino religioso". A ressalva pode ser necessária, mas não é suficiente: proselitismo é doutrinação, mas nem toda doutrinação é proselitismo. Proselitizar conota converter, atrair para uma religião alguém que ainda não a professa. Doutrinar tem sentido mais amplo: tanto pode denotar proselitismo quanto fortalecimento de crença já assumida. A restrição da LDB proíbe a professores de religião fazer prosélitos, mas não pregar a neófitos.
Se isento de doutrinação, o ensino do fenômeno social da religião teria mérito acadêmico. Crenças e sentimentos religiosos têm inspirado, favorecido ou promovido desde o sublime (caridade, todas as artes) ao mais horrendo (guerras, massacres, torturas e outras ferocidades). Ademais, não há registro histórico de povo sem religião. Existem até vestígios de rituais em grupos pré-históricos.
Qual a explicação para a intrigante universalidade? Talvez a resposta ainda venha a ser achada no genoma humano. Não em fatores genéticos de crença em espíritos, mas, sim, da função cerebral de conceber hipóteses. Pode-se imaginar como essa faculdade pode ter contribuído para o sucesso biológico da espécie humana. A moita que balouça oculta presa ou predador? E, para descobrir, será melhor gritar ou lançar-lhe uma pedra?
De que distância? Em tal nível, conjecturar é caracteristicamente humano. Hipóteses nos trouxeram à condição pensante de hoje. Alternativamente, não teria sido válido supor que uma força misteriosa balouçasse a moita? Sim, religião e ciência são irmãs; mãe delas, nossa função cerebral de engenhar hipóteses. Mas não que essas irmãs sejam gêmeas. A ciência se expande pela via racional. Cientistas sujeitam suas hipóteses a verificação e se dispõem a abandoná-las ou substituí-las quando se defrontam com evidências plausíveis que as refutem. As teorias da relatividade sucederam às "leis" de Newton no entendimento de fenômenos cósmicos, assim como a mecânica quântica as invalidou na leitura de realidades subatômicas.
Já a religião, ao contrário, valoriza o que os católicos denominam "dogma", mas que, sem esse nome, caracteriza toda religião: a crença baseada em hipóteses não verificadas ou inverificáveis. Exemplo, a Revelação (crença na inspiração divina da autoria da Bíblia, do Corão, do Livro de Mórmon etc.). Outro: a divindade de Jesus. Outro: a divindade xintoísta do imperador do Japão, até 1945. O crente se orgulha da fé que dispense provas ou que até prevaleça sobre evidências contrárias.
O consenso jurídico mais prudente continua sendo o de que não compete ao Estado arbitrar disputas filosóficas entre razão e fé. Muito menos, por decorrência, favorecer unilateralmente um dos campos, como a LDB implicitamente pretende, ao prover verbas à doutrinação, mas não ao ensino laico do que é religião. Há mais brasileiros "sem religião" do que a soma de espíritas, judeus, muçulmanos, budistas e evangélicos (exceto pentecostais).
No melhor dos mundos, Constituições seriam coerentes. Mas, se dois dispositivos constitucionais se contradizem, como no caso discutido aqui, só emenda constitucional pode conciliá-los. Digamos, a supressão do tal parágrafo 1º do art. 210, que, claramente (com alusão a impróprio dito popular), entrou na Constituição como Pilatos entrou no credo.
Mais um corte de bisturi e outro esparadrapo não tornariam a Constituição mais feia do que já é. Mas o Congresso Nacional se disporia a resgatar o princípio secularista? Muitos diriam que só por milagre.

ALDO PEREIRA , 74, é ex-editorialista e colaborador especial da Folha .
aldopereira.argumento@uol.com.br


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