São Paulo, sexta-feira, 05 de fevereiro de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Quem tem medo da verdade?

CLÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS


Será que a realidade é tão nítida? Se vamos buscar a verdade, é preciso fazê-lo de maneira verdadeira, e não à custa de sofismas


A RECENTE divulgação da terceira edição do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), com a sua polêmica comissão da verdade, acendeu um debate que é visto por alguns como uma espécie de cruzada entre um "eixo do bem" (o dos verdadeiros) e um outro, "do mal" (o dos mentirosos).
Mas será que a realidade é assim tão nítida? Será que a verdade é um valor inegociável neste Brasil pré-olímpico e já eleitoral? Ou será que o viés ideológico não contamina tal debate, impedindo que se veja que o "mundo lá fora" não é preto nem branco, que a natureza abomina maniqueísmos e que a vida humana, quando se torna história, reveste-se de nuances infinitas, as quais somente a inteligência mais sutil é capaz de penetrar?
A discussão acerca da punição aos envolvidos na lutas travadas durante o regime militar é, quanto a isso, emblemática. Não conheço ser humano normal capaz de discordar de que a tortura é um ato vil e covarde e de que qualquer torturador merece pena exemplar, tenha ele agido nos DOI-Codi brasileiros, na prisão de Guantánamo ou nos calabouços de Fidel.
Tal fato, porém, por si só não permite concluir que as vítimas do arbítrio no Brasil tenham sido -todas elas- defensoras fervorosas das liberdades democráticas, como sugerem os inúmeros filmes, livros e depoimentos vindos à luz nos últimos tempos, e que parecem almejar -salvo engano- menos a punição dos torturadores do que a glamourização da própria guerrilha, chegando mesmo, em alguns casos, à "quase beatificação" de algumas das suas lideranças.
A verdade é que a análise do ideário dos grupos de resistência armada demonstra facilmente que, neles, não havia muito espaço para o "mito burguês" da democracia; que os poucos democratas que os integravam somente lograram sê-lo em sofrida oposição ao totalitarismo vigente nesses grupos; e que era mais fácil encontrar defensores da causa democrática entre os membros do MDB -como o saudoso dr. Ulysses- que insistiam na luta parlamentar (apesar das severas restrições impostas ao Congresso Nacional) do que entre os que optaram por expropriações, sequestros e justiçamentos.
(É provável que, hoje, já mais velhos, muitos dos que pegaram em armas sejam capazes de perceber o erro estratégico que cometeram, pois a verdade é que os "brucutus linhas-duras" dificilmente teriam tido o despudor de ir tão longe no desrespeito aos direitos humanos se a própria guerrilha não houvesse criado uma situação de não retorno, imune a negociações. E é até possível que alguns dos que lutaram tenham feito a autocrítica e estejam sendo sinceros quando dizem que agora são "100% democratas".
Todavia, é pelo menos duvidoso que, naqueles tempos de "foquismo" e de "revolução na revolução", os seus objetivos fossem assim tão pacíficos e que teriam, caso tivessem tomado o poder, respeitado integralmente os direitos fundamentais dos seus adversários.
A história está repleta de grupos libertários que lutaram contra regimes iníquos e que acabaram, todavia, tornando-se ainda mais odiosos do que os antigos opressores.)
Um outro exemplo de simplificação histórica grosseira é o mau hábito de certos autores de livros didáticos que insistem em falar "em bloco" sobre o regime militar. Confundem-se, nesses "tratados", com triunfante ignorância -ou rematada má-fé-, os diferentes governos do período, que são todos condenados como se nada de construtivo houvessem feito. Felizmente, esse viés caricato já há muito deixou de ser empregado pelos estudiosos realmente sérios.
Assim, só para dar um exemplo, qualquer especialista sabe bem a diferença entre as políticas exteriores dos governos Castelo e Geisel: o primeiro alinhou-se caninamente aos Estados Unidos, e o segundo, ao contrário, com a doutrina do pragmatismo responsável, foi um continuador criativo da política externa independente, formulada ainda no pré-64 por políticos ideologicamente tão diversos como Afonso Arinos e San Tiago Dantas.
Ignorar tais fatos, reduzindo o regime militar ao AI-5, é o mesmo que dizer que Juscelino não foi Brasília nem o Plano de Metas, mas só inflação; que o Estado Novo não foi Volta Redonda nem a CLT, mas só Filinto Müller; que o próprio Lula não são os programas sociais e a bem-sucedida diplomacia presidencial, mas tão somente a explosão dos gastos correntes e a possibilidade assustadora do retorno da censura à imprensa, desta feita por razões "politicamente corretas".
Ora, se vamos mesmo buscar a verdade, é preciso que o façamos de maneira verdadeira, e não à custa de sofismas que só denotam a paranoia dos que vivem da mistificação.

CLÁUDIO GUIMARÃES DOS SANTOS, 49, médico, psicoterapeuta e neurocientista, é escritor, artista plástico, mestre em artes pela ECA-USP e doutor em linguística pela Universidade de Toulouse-Le Mirail (França).

perplexidadesereflexoes.blogspot.com


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