São Paulo, quarta-feira, 05 de julho de 2006

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Os nossos homens-bomba

BENO SUCHODOLSKI

O IMPIEDOSO ASSASSINATO de dezenas de policiais em São Paulo, seguido da matança de mais de duas centenas de supostos criminosos, contém elementos insuspeitados de uma nova variante da dinâmica de ação e reação na esfera dos comportamentos anti-sociais.
Os "cidadãos de bem", a imensa maioria dos habitantes do Estado, sentem-se vingados com a eliminação de mais de duas centenas de "bandidos", possivelmente muitos inocentes, punição exemplar sem nenhum esforço de apuração da responsabilidade pelos homicídios praticados contra os policiais.
A sociedade como um todo parece satisfeita com a rapidez da vingança; a consciência coletiva, de duvidosa existência, não dá nenhum indicador de efetiva repulsa ao assassínio dos criminosos, pobres diabos. Afinal, pensam, morreram bem merecidamente porque eram bandidos. Um punhado de defensores dos direitos humanos de carteirinha se mantém militante na defesa da lei.
Mas São Paulo não parece emocionada com o esforço desse grupo. A pena de morte, que não existe no Brasil, foi aplicada, por atacado, sem julgamento prévio, por meio de uma matança coletiva. A cidadania foi vingada. Mas quem foram as vítimas da vingança? Teriam sido os assassinos dos policiais? Que informação existe, disponível publicamente, sobre as vítimas desse genocídio?
Vamos nos perguntar primeiro quem teriam sido os assassinos dos policiais. No sistema de distribuição de drogas, os traficantes que não honram o pagamento pelos fornecimentos são condenados à morte e eliminados pelas quadrilhas. O inadimplente recebe um prazo para pagar. Se não efetuar o pagamento, morre. Inadimplente, o pequeno traficante sabe que sua vida não vale nada. A qualquer momento será assassinado.


A pena de morte, que não existe no Brasil, foi aplicada, por atacado, sem julgamento prévio, por meio de uma matança coletiva

Na gíria dos criminosos é chamado de "binladen", apelido que contém a idéia inequívoca de ser um homem marcado para morrer.
Todos os dias, na cidade de São Paulo, circulam centenas de "binladens": não têm mais crédito para continuar seu negócio do tráfico e sabem que serão eliminados por seus credores.
Que extraordinária massa de manobra! Que gente pronta para qualquer sacrifício! Pessoas que têm a mais completa convicção do desvalor de suas vidas. Prontos para morrer e, mais ainda, matar. A mesma estrutura psicológica do homem-bomba.
Com esse ingrediente humano, o crime organizado desenvolve uma estratégia terrorista brilhante. Por que não oferecer a essa massa de condenados mortos-vivos a oportunidade de se redimir com a organização, de ter suas dívidas perdoadas e o retorno do seu direito à vida? O preço a pagar pela quitação é o assassinato de um policial. O "binladen" que mata um policial é perdoado e fica livre da condenação pelo crime organizado. Uma espécie de dação em pagamento mediante prestação de serviço.
Assim, o crime organizado instrumenta a escória dos seu bandidos, os caloteiros dos bandidos, para transformá-los nos assassinos de policiais. Mas a cúpula do crime sabe que o terror gerado pelo assassinato dos policiais precisará ser aplacado em um futuro próximo, uma questão de dias, inclusive para eficiência e bom funcionamento do negócio de distribuição de drogas.
Antes que a sociedade se volte contra os chefes das quadrilhas, a cúpula entrega aos vingadores dos policiais assassinados os nomes e o paradeiro dos "binladens". Assim, os "binladens" que teriam sido assassinados pelo crime organizado são por fim assassinados pela polícia. "Happy end".
Fecha-se um brutal primeiro ciclo de violência e hipocrisia. Mas esse é só o primeiro capítulo. Seguramente, teremos mais emoções no próximo.

BENO SUCHODOLSKI, 61, é advogado, membro do Conselho de Administração do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial e do Conselho Jurídico da Fiesp.

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