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CARLOS HEITOR CONY
Idéia e memória
RIO DE JANEIRO - Em "La Notte", um dos filmes emblemáticos de
Michelangelo Antonioni, o escritor
interpretado por Marcello Mastroianni, cobrado pela mulher
(Jeanne Moreau), diz que não tem
mais idéias, tem memórias. Ingmar
Bergman, que morreu horas antes
de Antonioni, admitia que toda a
sua obra nascia de seu passado, notadamente de sua infância.
Aos dois cineastas, dos maiores
de todos os tempos, podemos acrescentar um terceiro, Federico Fellini, que nunca teve uma idéia precisa de nada, nem sobre o cristianismo nem sobre o socialismo, mas
não quebrou a casca onde guardaria
para sempre o fruto de si mesmo
-tal como a Capitu adulta que estava toda na menina que se apoderava
do companheiro de infância.
Entrando no assunto: o cronista
não tem culpa de Antonioni e Bergman terem morrido ao mesmo
tempo, pautando involuntariamente centenas de reflexões feitas na
mídia internacional. Autores defasados, com técnicas e preocupações
que não mais pertencem a este
mundo. Mas que ficarão intactos,
suspensos no ar, como aquele quarto no beco que Manuel Bandeira
evocou num de seus poemas.
Escrevi sobre Bergman na crônica anterior. Deveria escrever agora
sobre Antonioni. Como o personagem de "La Notte", não tenho
idéias, nem me interessa tê-las.
Pessoas que me julgam bem informado querem saber minha opinião
sobre o acidente com o Airbus, a
culpa da pista, do equipamento, do
piloto. Acontece que nem formei
ainda um juízo sobre Febrônio, um
tarado sexual dos anos 30. Quando
fugiu da prisão obrigou todos os
pais a trancarem seus filhos em casa, as escolas fecharam, a besta-fera
solta na cidade. Bergman teria feito
um belo filme sobre Febrônio. E
Antonioni mostraria o vazio das
ruas, as almas cheias de tédio -pior
do que o medo.
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