São Paulo, terça-feira, 05 de setembro de 2006

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O risco do cinema

ANDRÉ STURM


Esse tema, senão o principal, é um dos mais importantes na atual conjuntura do cinema brasileiro. Mas não é tão simples assim


NA SEMANA passada, a Folha publicou reportagem com o título "Cinema sem Risco", com declarações e algumas informações que mostravam que o cinema do Brasil é um fracasso em função do sistema de financiamento pelas leis de incentivo fiscal, em especial a conhecida como Lei do Audiovisual. Esse tema é um dos mais importantes, senão o principal, na atual conjuntura do cinema brasileiro. Mas não é tão simples assim.
Existem diversas variáveis e informações que não foram colocadas. Após a hecatombe do governo Collor que varreu o cinema brasileiro por três anos, foi criada a Lei do Audiovisual, um primeiro passo para reativar a produção, no espírito neoliberal da época. E foi esse mecanismo que permitiu ao nosso cinema voltar às telas e, aos poucos, reconquistar as platéias no Brasil e no exterior.
O incentivo fiscal, porém, se tornou a única maneira de fazer cinema no Brasil. Durante o governo FHC, um mecanismo se tornou "a" política cultural para o setor, gerando diversas distorções. Por exemplo, transformando um estreante, um neófito e um produtor com currículo de realizações em competidores na disputa pelos mesmos recursos, numa espécie de guichê único.
Naturalmente, transferir totalmente para a iniciativa privada a decisão sobre quem irá ou não filmar no país é um equívoco. Dessa maneira, inúmeros filmes passaram a ser feitos sem nenhum critério, a não ser o da vontade de seu realizador e o do gosto de algum diretor de marketing.
Outro problema foi que, como não existiam medidas efetivas de apoio ao lançamento desses filmes, não havia, necessariamente, nenhum compromisso com o resultado. Isso não impediu, porém, que, em 2003, os filmes brasileiros alcançassem a marca de 22% do mercado.
De outro lado, não se pode avaliar o resultado de um filme apenas pelo número de ingressos que vende nas bilheterias. Além das salas de cinema, ele terá o mercado de DVD e das várias janelas em televisão e internet. E, claro, um filme tem um valor cultural que permite uma longa vida, com exibições em emissoras públicas, escolas, projetos especiais etc.
É um equivoco também a impressão de que foram "dados" R$ 2 milhões para um cineasta, e o filme rendeu X, significando por isso um prejuízo. Cinema não é literatura, onde um artista desenvolve sua obra e depois precisa apenas publicá-la (sem desmerecer os escritores e suas dificuldades). Cinema é indústria.
Um filme envolve um batalhão de pessoas e insumos. Os recursos aplicados num filme são investimentos na geração de empregos diretos (cerca de 200, em média) e indiretos; movimentam setores diversos, como alimentação, transporte e hotelaria; e um enorme parque de infra-estrutura, com laboratórios, estúdios de som, de finalização etc.
O cinema é uma atividade que, em todo o mundo, depende da participação do Estado. O cinema americano, sem dúvida o mais bem-sucedido comercialmente, só alcançou esse resultado após décadas de apoio direto, financeiro e institucional do governo.
Até bem pouco tempo atrás, a MPA, que defende os interesses dessa indústria naquele país, tinha seu escritório dentro da Casa Branca.
O cinema americano foi, e ainda é, tratado como questão de Estado. Isso possibilitou a criação de canais de distribuição quase monopolistas ao redor do mundo. É conhecida uma frase de um presidente americano que, no início dos anos 30, disse: "Onde entram nossos filmes, entram nossos produtos". E assim foi.
Na França, na Alemanha, na Itália, na Coréia, enfim, em todo o mundo, o Estado apóia a atividade, seja por meio de incentivos, seja por investimentos, seja por legislação.
O mecanismo do incentivo fiscal criou vícios, sim. Que precisam ser enfrentados. O primeiro passo é criar novos mecanismos de financiamento da atividade. Mecanismos automáticos em função do resultado; recursos com risco ao produtor que quiser se aventurar em uma produção em que ele confie; um sistema de adicional de renda que permita amortizar o risco, como na Argentina; recursos para que distribuidores brasileiros possam competir com os estrangeiros e investir na produção nacional.
Dessa maneira, cada produtor poderá buscar seu financiamento na forma mais adequada a seu projeto, com maior ou menor risco.
De qualquer forma, a Lei do Audiovisual precisa ser preservada. E melhorada.
Dentro de um sistema integrado que estimule o resultado e a criatividade. Dentro de uma política efetiva para o setor. Enfim, uma política estratégica para a atividade, e não apenas um mecanismo isolado. Uma política que pense a produção, a distribuição, a exibição e a veiculação.

ANDRÉ STURM , 40, cineasta e distribuidor, é programador do HSBC Belas Artes e presidente do Sicesp (Sindicato da Indústria Cinematográfica do Estado de São Paulo).


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