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São Paulo, domingo, 05 de outubro de 2003

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O CASO HUMBERT

O caso Humbert comoveu a França e reacendeu os debates sobre a eutanásia. Vincent Humbert, 22, ficou tetraplégico, cego e mudo num acidente de carro três anos atrás. Comunicando-se com o mundo apenas através de movimentos parciais do polegar da mão esquerda, ele escreveu um livro em que reclama o direito de morrer e anuncia seus planos para pôr um fim à própria existência, com o auxílio de sua mãe, Marie. Na semana retrasada, ela ministrou-lhe uma superdose de barbitúricos que o levou a um coma e, depois, à morte. Um dos médicos que o atendiam admitiu que também ajudou o rapaz a morrer, desligando os aparelhos que o mantinham vivo.
Na França como no Brasil, a eutanásia, a indução à morte com vistas a abreviar o sofrimento de um doente incurável, é proibida. Marie deverá responder a processo. Ainda não está claro o que pode acontecer com o médico. Boa parte da opinião pública francesa apoiou a atitude da mãe e se diz favorável a uma mudança na legislação. Apenas a Holanda e a Bélgica possuem leis que admitem a eutanásia ativa e a regulam. Na Suíça, alguns cantões a toleram.
Parece claro que a questão, bastante polêmica, mereceria uma legislação para pelo menos distinguir entre os diversos tipos de eutanásia, que vão das ativas, como o suicídio assistido no caso do jovem Humbert, às passivas, pelas quais uma equipe médica deixa de tentar reanimar um paciente terminal que sofra uma parada cardíaca. Esse segundo tipo ocorre quase todos os dias em qualquer grande centro hospitalar do mundo. Numa interpretação draconiana da lei, porém, tal conduta poderia, no Brasil, ser tipificada como omissão de socorro.
Com o avanço de técnicas médicas, pode-se hoje fazer prognósticos razoavelmente seguros. Embora sempre se possam levantar casos milagrosos de recuperação, quando mais de um médico afirma que um caso é sem esperança, são realmente grandes as chances de que de fato o seja. Mais do que isso, hoje é possível manter doentes muito graves vivos por muito tempo, ainda que com baixíssima qualidade de vida.
As objeções morais a uma eventual descriminalização da eutanásia, seja na França ou no Brasil, precisam sem dúvida ser levadas em conta, mas não devem ser tomadas como um obstáculo intransponível. Exceto para algumas religiões, a própria moral é dinâmica, variando de época para época, de lugar para lugar. Também a possibilidade de que a legalização sirva para acobertar homicídios precisa ser levada em conta, ainda que sem caráter determinante.
Em princípio, é mais do que razoável que um doente lúcido e devidamente informado do curso habitual de sua moléstia escolha como morrer. Essa é apenas a mais dramática das liberdades individuais. Mas, como nem sempre o paciente tem condições de tomar essa decisão, torna-se importante estabelecer regras claras para determinar o que se pode fazer nesses casos, quem responde pelo paciente e até que ponto. O que não convém é que uma discussão tão importante como essa siga sendo travada nas sombras.


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