São Paulo, sexta-feira, 05 de outubro de 2007

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O sigilo do despudor

JOSÉ AFONSO DA SILVA

Se os elementos que justificam o bicameralismo faltam ao Senado, não há razão para a duplicidade de câmaras

O SENADO é uma velha instituição política de natureza conservadora. Na Roma antiga, era uma assembléia de nobres. Seus membros tinham investidura vitalícia. A partir do modelo romano é que a instituição Senado foi sendo concebida como uma casa de pessoas com certa posição social elevada, daí chamar-se Câmara Alta, em contraposição à Câmara Baixa, representante do povo comum.
Mas, a partir da formação da Federação norte-americana, a doutrina tem sustentado que a existência do Senado é imprescindível ao federalismo. Aí também composto de pessoas com mais idade, que se supõem mais reflexivas, mais moderadas.
Mesmo no federalismo, o Senado continua com sua função conservadora, câmara de revisão, destinada a vetar a legislação progressista da Câmara Baixa.
De fato, uma das principais justificativas do bicameralismo é a de que o Senado assegura maior maturidade das resoluções adotadas em comum por ambas as câmaras, pois "a existência de uma câmara de reflexão evitará as medidas precipitadas e apaixonadas, permitirá o diálogo entre os membros de ambas as câmaras, porque, exigindo-se mais idade para o Senado, seus membros serão supostamente mais maduros".
Se esses elementos faltam ao Senado, não há justificativa para a duplicidade de câmaras.
Episódio recente não depõe em favor do Senado. Lá existem homens e mulheres da maior qualificação -e sabemos quais são-, mas eles não estão conseguindo exercer uma liderança capaz de imprimir à instituição um pensamento mais elevado.
Se confrontarmos com o que ocorreu no Supremo Tribunal Federal, o Senado fica muito mal.
No julgamento do mensalão, ainda como simples admissibilidade do processo, pudemos apreciar o porte da presidenta do STF, ministra Ellen Gracie, serena, digna, sem ostentação, como convém ao chefe de um dos Poderes da República.
No nosso Senado, ao contrário, o chefe de outro Poder da República estava como que "de cócoras", submetido a severas acusações sobre fatos mal explicados, sem ter tido a grandeza da renúncia.
No Supremo, vimos vários dias de sessões públicas, com todos os seus membros se expondo ao público e à mídia; o relator do caso se apresentou com a serenidade e a seriedade de magistrado, analisou seu caso, demonstrou por que julgaria deste ou daquele modo, à vista de todos; os demais juízes se pronunciaram, fundamentaram sua decisão, porque todo julgamento tem que ser público, e as decisões, fundamentadas.
O princípio da publicidade dos julgamentos é exigência da democracia e da realização da justiça. Mas o Senado não o atendeu . Fez-se uma sessão secreta para julgar um de seus membros. No caso, o Senado estava no exercício de um juízo. Quebrou a dignidade desse juízo ao fazê-lo secretamente, sem previsão constitucional.
A Constituição prevê, sim, que a perda de mandato seja decidida por voto secreto. Mas uma coisa é voto secreto; outra, sessão secreta. Esta só se justifica em casos muito excepcionais, quando está em jogo a segurança do Estado. Dir-se-á que ela é prevista no artigo 197, I, c, do Regimento Interno do Senado. Mas, se a Constituição não a autoriza, conclui-se que tal dispositivo é inconstitucional; sua revogação agora não elimina a inconstitucionalidade do procedimento realizado. A Constituição é que teria que ser aplicada, não o regimento.
No Supremo, todos os ministros discutiram, argumentaram e votaram, dando o seu veredicto publicamente, porque o juiz não pode eximir-se de sentenciar, não pode, sob nenhum pretexto, deixar de decidir; não se omite.
Seis senadores, juizes então, se abstiveram; descumpriram sua missão de julgar. Ninguém quer condenação a qualquer preço; quer-se um julgamento justo. Para tanto, o juiz tem que decidir. Os senadores estavam numa função de julgamento, não podiam omitir-se. Fazendo-o, geram uma decisão nula.
João Mangabeira disse, certa vez, que o Supremo Tribunal Federal foi a instituição que mais tinha falhado na República; o Congresso, não.
Se estivesse entre nós, estaria dizendo: o Supremo Tribunal Federal não falhou, dignificou-se mais ainda, elevou-se, engrandeceu. Ao contrário, uma das instituições do Congresso falhou, minguou, apequenou-se.
Utilizou-se de uma sessão secreta para se esconder, numa vergonhosa fraude à Constituição.


JOSÉ AFONSO DA SILVA, 82, constitucionalista, é professor aposentado da Faculdade de Direito da USP e autor de "Curso de Direito Constitucional Positivo", entre outras obras. Foi secretário da Segurança Pública (governo Mário Covas).

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