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O sigilo do despudor
JOSÉ AFONSO DA SILVA
Se os elementos que justificam o bicameralismo faltam ao Senado, não há razão para a
duplicidade de câmaras
O SENADO é uma velha instituição política de natureza conservadora. Na Roma antiga,
era uma assembléia de nobres. Seus
membros tinham investidura vitalícia. A partir do modelo romano é que
a instituição Senado foi sendo concebida como uma casa de pessoas com
certa posição social elevada, daí chamar-se Câmara Alta, em contraposição à Câmara Baixa, representante do povo comum.
Mas, a partir da formação da Federação norte-americana, a doutrina
tem sustentado que a existência do
Senado é imprescindível ao federalismo. Aí também composto de pessoas
com mais idade, que se supõem mais
reflexivas, mais moderadas.
Mesmo no federalismo, o Senado
continua com sua função conservadora, câmara de revisão, destinada a vetar a legislação progressista da Câmara Baixa.
De fato, uma das principais justificativas do bicameralismo é a de que o
Senado assegura maior maturidade
das resoluções adotadas em comum
por ambas as câmaras, pois "a existência de uma câmara de reflexão evitará as medidas precipitadas e apaixonadas, permitirá o diálogo entre os
membros de ambas as câmaras, porque, exigindo-se mais idade para o Senado, seus membros serão supostamente mais maduros".
Se esses elementos faltam ao Senado, não há justificativa para a duplicidade de câmaras.
Episódio recente não depõe em favor do Senado. Lá existem homens e
mulheres da maior qualificação -e
sabemos quais são-, mas eles não estão conseguindo exercer uma liderança capaz de imprimir à instituição
um pensamento mais elevado.
Se confrontarmos com o que ocorreu no Supremo Tribunal Federal, o
Senado fica muito mal.
No julgamento do mensalão, ainda
como simples admissibilidade do
processo, pudemos apreciar o porte
da presidenta do STF, ministra Ellen
Gracie, serena, digna, sem ostentação,
como convém ao chefe de um dos Poderes da República.
No nosso Senado, ao contrário, o
chefe de outro Poder da República estava como que "de cócoras", submetido a severas acusações sobre fatos
mal explicados, sem ter tido a grandeza da renúncia.
No Supremo, vimos vários dias de
sessões públicas, com todos os seus
membros se expondo ao público e à
mídia; o relator do caso se apresentou
com a serenidade e a seriedade de magistrado, analisou seu caso, demonstrou por que julgaria deste ou daquele
modo, à vista de todos; os demais juízes se pronunciaram, fundamentaram sua decisão, porque todo julgamento tem que ser público, e as decisões, fundamentadas.
O princípio da publicidade dos julgamentos é exigência da democracia e
da realização da justiça. Mas o Senado
não o atendeu . Fez-se uma sessão secreta para julgar um de seus membros. No caso, o Senado estava no
exercício de um juízo. Quebrou a dignidade desse juízo ao fazê-lo secretamente, sem previsão constitucional.
A Constituição prevê, sim, que a
perda de mandato seja decidida por
voto secreto. Mas uma coisa é voto secreto; outra, sessão secreta. Esta só se
justifica em casos muito excepcionais, quando está em jogo a segurança
do Estado. Dir-se-á que ela é prevista
no artigo 197, I, c, do Regimento Interno do Senado. Mas, se a Constituição não a autoriza, conclui-se que tal
dispositivo é inconstitucional; sua revogação agora não elimina a inconstitucionalidade do procedimento realizado. A Constituição é que teria que
ser aplicada, não o regimento.
No Supremo, todos os ministros
discutiram, argumentaram e votaram, dando o seu veredicto publicamente, porque o juiz não pode eximir-se de sentenciar, não pode, sob
nenhum pretexto, deixar de decidir;
não se omite.
Seis senadores, juizes então, se abstiveram; descumpriram sua missão
de julgar. Ninguém quer condenação
a qualquer preço; quer-se um julgamento justo. Para tanto, o juiz tem
que decidir. Os senadores estavam
numa função de julgamento, não podiam omitir-se. Fazendo-o, geram
uma decisão nula.
João Mangabeira disse, certa vez,
que o Supremo Tribunal Federal foi a
instituição que mais tinha falhado na
República; o Congresso, não.
Se estivesse entre nós, estaria dizendo: o Supremo Tribunal Federal
não falhou, dignificou-se mais ainda,
elevou-se, engrandeceu. Ao contrário, uma das instituições do Congresso falhou, minguou, apequenou-se.
Utilizou-se de uma sessão secreta para se esconder, numa vergonhosa
fraude à Constituição.
JOSÉ AFONSO DA SILVA, 82, constitucionalista, é professor aposentado da Faculdade de Direito da USP e autor de "Curso de Direito Constitucional Positivo", entre outras obras. Foi secretário da Segurança Pública (governo
Mário Covas).
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