São Paulo, quinta-feira, 06 de março de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

A igreja e a defesa da vida

FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO

Iniciativas sociais e políticas de governo devem acolher quem sofre e permitir que opte pela vida, desde o início e em qualquer circunstância

SEGUNDO MARCELO Leite ("CNBB vai às compras", Mais!, 10/2/08), no texto-base da Campanha da Fraternidade (CF) deste ano, sobre a defesa da vida, a igreja seleciona elementos do discurso científico e acrescenta-lhes seus próprios dogmas. Caberia aqui parafrasear uma frase citada pelo próprio Marcelo Leite: "Os meios de comunicação criam uma paródia da ciência para uso próprio. Aí eles atacam essa paródia como se estivessem criticando a ciência" (em "Má ciência e mau jornalismo", 18/9/05). Substitua-se ciência por Igreja Católica, e a frase também será válida.
A sociedade burguesa se organizou a partir de valores vindos do cristianismo, como a dignidade da pessoa, a fraternidade e a liberdade. Com o tempo, esses valores ganharam novos significados, perdendo seu sentido cristão original. Quem não percebe essa mudança de valores e posturas, em vez de esclarecer, deturpa o cristianismo ao comentá-lo. Mas para a cultura moderna em crise é mais fácil atacar essa paródia de cristianismo criada por ela mesma do que assumir as contradições da modernidade e deixar-se questionar.
Os grandes temas dessa CF são a vida e a pessoa humana, o sofrimento e o amor. Para entendê-los, o texto-base se vale freqüentemente de dados científicos. Mas a ciência nos ajuda a compreender o funcionamento do mundo, os mecanismos que geram a dor e o sofrimento, porém é impotente para responder às perguntas sobre o sentido da vida -mesmo porque essa não é a sua razão de ser.
A reflexão da igreja na CF é ética, e as conclusões não se legitimam nem pelo cientificismo nem pelo dogmatismo. O texto-base dialoga com as ciências (principalmente na primeira parte, o "Ver") e a própria fé católica (na segunda parte, o "Julgar"), mas seu grande interlocutor é a experiência humana -o que talvez pareça impossível para quem crê, como Rubem Alves ("As estrelas brilham, os homens sofrem", Cotidiano, 19/2/08), que a igreja só olha para as estrelas e não vê a experiência concreta de sofrimento das pessoas.
O que deseja a pessoa humana? Como ela se realiza? O texto da CF parte da reflexão sobre o desejo do coração do ser humano. É um diálogo onde os critérios éticos nascem da compreensão de seu anseio por felicidade, e não de convenções sociais. Esse desejo pode se realizar reduzido a busca de satisfação e fuga da dor? Ou necessita de algo mais, de um amor capaz de se realizar por meio da doação ao outro, capaz de acolher e dar sentido até mesmo a sofrimento, dor e morte?
Seriam essas perguntas sobre o amor e o sentido as tais estrelas que não permitem ver o sofrimento e a experiência concreta das pessoas?
Vicky é ugandense, negra, pobre, soropositiva, abandonada pelo marido doente de Aids porque se recusou a abortar o terceiro filho. Chegou a ter 35 kg, quando foi para um centro católico de acolhida a doentes de Aids. Hoje tem 75 kg e um filho já na universidade. Sobre sua experiência nesse centro de acolhida, escreveu: "Era difícil acreditar que havia encontrado mulheres que pudessem viver daquela forma mesmo estando doentes de Aids, tal era a alegria que tinham no rosto; dançavam e estavam felizes, e eu me perguntava como alguém que tinha essa doença podia cantar e dançar... Onde está o poder da morte? Está na perda da esperança e na falta de amor". A experiência de Vicky, que teve uma carta publicada numa campanha internacional de ajuda a obras sociais, as tendas de Natal, é similar a muitas outras.
Essas experiências são as estrelas para as quais a igreja olha ao se acercar do sofrimento humano. Por isso, acredita na capacidade que o amor e a acolhida têm de superar a dor. Partindo daí, propõe que iniciativas sociais e políticas governamentais devem acolher quem sofre e permitir que opte pela vida, desde seu início e em qualquer circunstância.
Por isso, na proposta da CF, "optar pela vida" não se restringe apenas a ter leis contra o aborto e a eutanásia, por exemplo. Pelo contrário, implica em criar formas pelas quais as pessoas possam acolher uma gravidez indesejada e um doente incurável, sem que isso se torne um obstáculo a sua felicidade, mas sim um caminho para sua realização.
Essa não é uma proposta "confessional" ou uma crença religiosa, mas sim um modo de viver a própria ânsia de felicidade, a experiência do amor e do sofrimento. Um modo de ser mais humanos, que talvez queiram que renunciemos a desejar.


FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO, sociólogo e biólogo, é coordenador de Projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Carlos Augusto Calil: Bibliotecas para quem?

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.