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A igreja e a defesa da vida
FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO
Iniciativas sociais e políticas de governo devem acolher quem sofre e permitir que opte pela vida, desde o início e em qualquer circunstância
SEGUNDO MARCELO Leite
("CNBB vai às compras", Mais!,
10/2/08), no texto-base da Campanha da Fraternidade (CF) deste
ano, sobre a defesa da vida, a igreja seleciona elementos do discurso científico e acrescenta-lhes seus próprios
dogmas. Caberia aqui parafrasear
uma frase citada pelo próprio Marcelo Leite: "Os meios de comunicação
criam uma paródia da ciência para
uso próprio. Aí eles atacam essa paródia como se estivessem criticando a
ciência" (em "Má ciência e mau jornalismo", 18/9/05). Substitua-se
ciência por Igreja Católica, e a frase
também será válida.
A sociedade burguesa se organizou
a partir de valores vindos do cristianismo, como a dignidade da pessoa, a
fraternidade e a liberdade. Com o
tempo, esses valores ganharam novos
significados, perdendo seu sentido
cristão original. Quem não percebe
essa mudança de valores e posturas,
em vez de esclarecer, deturpa o cristianismo ao comentá-lo. Mas para a
cultura moderna em crise é mais fácil
atacar essa paródia de cristianismo
criada por ela mesma do que assumir
as contradições da modernidade e
deixar-se questionar.
Os grandes temas dessa CF são a vida e a pessoa humana, o sofrimento e
o amor. Para entendê-los, o texto-base se vale freqüentemente de dados
científicos. Mas a ciência nos ajuda a
compreender o funcionamento do
mundo, os mecanismos que geram a
dor e o sofrimento, porém é impotente para responder às perguntas sobre
o sentido da vida -mesmo porque essa não é a sua razão de ser.
A reflexão da igreja na CF é ética, e
as conclusões não se legitimam nem
pelo cientificismo nem pelo dogmatismo. O texto-base dialoga com as
ciências (principalmente na primeira
parte, o "Ver") e a própria fé católica
(na segunda parte, o "Julgar"), mas
seu grande interlocutor é a experiência humana -o que talvez pareça impossível para quem crê, como Rubem
Alves ("As estrelas brilham, os homens sofrem", Cotidiano, 19/2/08), que
a igreja só olha para as estrelas e não
vê a experiência concreta de sofrimento das pessoas.
O que deseja a pessoa humana? Como ela se realiza? O texto da CF parte
da reflexão sobre o desejo do coração
do ser humano. É um diálogo onde os
critérios éticos nascem da compreensão de seu anseio por felicidade, e não
de convenções sociais. Esse desejo
pode se realizar reduzido a busca de
satisfação e fuga da dor? Ou necessita
de algo mais, de um amor capaz de se
realizar por meio da doação ao outro,
capaz de acolher e dar sentido até
mesmo a sofrimento, dor e morte?
Seriam essas perguntas sobre o
amor e o sentido as tais estrelas que
não permitem ver o sofrimento e a
experiência concreta das pessoas?
Vicky é ugandense, negra, pobre,
soropositiva, abandonada pelo marido doente de Aids porque se recusou
a abortar o terceiro filho. Chegou a
ter 35 kg, quando foi para um centro
católico de acolhida a doentes de
Aids. Hoje tem 75 kg e um filho já na
universidade. Sobre sua experiência
nesse centro de acolhida, escreveu:
"Era difícil acreditar que havia encontrado mulheres que pudessem viver daquela forma mesmo estando
doentes de Aids, tal era a alegria que
tinham no rosto; dançavam e estavam felizes, e eu me perguntava como
alguém que tinha essa doença podia
cantar e dançar... Onde está o poder
da morte? Está na perda da esperança
e na falta de amor". A experiência de
Vicky, que teve uma carta publicada
numa campanha internacional de
ajuda a obras sociais, as tendas de Natal, é similar a muitas outras.
Essas experiências são as estrelas
para as quais a igreja olha ao se acercar do sofrimento humano. Por isso,
acredita na capacidade que o amor e a
acolhida têm de superar a dor. Partindo daí, propõe que iniciativas sociais
e políticas governamentais devem
acolher quem sofre e permitir que
opte pela vida, desde seu início e em
qualquer circunstância.
Por isso, na proposta da CF, "optar
pela vida" não se restringe apenas a
ter leis contra o aborto e a eutanásia,
por exemplo. Pelo contrário, implica
em criar formas pelas quais as pessoas possam acolher uma gravidez indesejada e um doente incurável, sem
que isso se torne um obstáculo a sua
felicidade, mas sim um caminho para
sua realização.
Essa não é uma proposta "confessional" ou uma crença religiosa, mas
sim um modo de viver a própria ânsia
de felicidade, a experiência do amor e
do sofrimento. Um modo de ser mais
humanos, que talvez queiram que renunciemos a desejar.
FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO, sociólogo e biólogo,
é coordenador de Projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo).
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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