São Paulo, quarta-feira, 06 de maio de 2009

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Cultura de legalidade

FÁBIO DE SÁ CESNIK, JOSÉ MAURÍCIO FITTIPALDI e FERNANDO QUINTINO


O projeto de reforma da Lei Rouanet é muito vago. E a inexatidão de um texto legal é das principais ameaças ao Estado de Direito

MUITOS TÊM acompanhado a discussão em torno da proposta do Ministério da Cultura (MinC) para a modificação do sistema de financiamento à cultura (com a revogação da Lei Rouanet), debate amplamente estimulado pelos veículos de comunicação, em geral, e por esta Folha, em particular, e cuja fase de consulta pública encerra-se hoje (embora o debate prometa arrastar-se por mais tempo, derradeiramente no Congresso Nacional).
A discussão pública, com ampla participação dos meios de comunicação, é, sem dúvida, importante para a consolidação das instituições democráticas do país. Contudo, para que o debate seja verdadeiramente profícuo, é preciso que leve em consideração o texto da proposta efetivamente posta em consulta.
Nesse sentido, é preciso chamar a atenção para o perigo que as leis excessivamente vagas ou imprecisas representam: a inexatidão ou omissão de um texto legal é uma das principais ameaças ao Estado de Direito, pois, diante delas, o Poder Executivo passa a ter poder de dar à lei o conteúdo que entender conveniente.
E é justamente nesse ponto que a minuta de projeto de lei elaborada pelo MinC carece de reparo imediato.
De tão vago o projeto, é impossível a qualquer um definir o seu efetivo conteúdo. Trata-se, pois, de uma questão de legalidade, princípio sobre o qual se assentam todos os demais princípios que caracterizam um Estado como sendo de Direito, isto é, no qual prevalece a força da lei, sob controle do Poder Legislativo.
Para comprovar tal afirmação, basta analisar a proposta em consulta pública, em especial a parte que regulamenta a aprovação de projetos submetidos à aprovação do Ministério da Cultura. O projeto (parágrafo único do artigo 4º) estabelece a criação de comitês gestores setoriais, com participação da sociedade civil, no âmbito da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, cuja composição, funcionamento e competências simplesmente não são definidos (ficam relegados à posterior regulamentação pelo Poder Executivo).
Adiante, o artigo 32 afirma que as propostas submetidas ao Ministério da Cultura serão avaliadas a partir de critérios "transparentes" -mas tais critérios "transparentes" não são definidos pelo texto em consulta.
Por fim, o projeto, descrevendo perfeita parábola, dispõe (parágrafo primeiro do artigo 32) que a definição dos tais critérios de análise ficará a cargo da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, com a colaboração dos comitês gestores -sim, os mesmos comitês a que nos referimos, cuja composição permanece obscura.
Em outras palavras, projeto apresentado pelo MinC não só é omisso quanto aos critérios que nortearão sua aplicação concreta mas também quanto à composição da comissão competente para defini-los! Cabe perguntar: quem é competente para aprovar tais critérios e qual o seu efetivo conteúdo? É evidente que o projeto apresentado viola a noção de legalidade, pois deixa de definir, na própria lei, conceitos básicos à sua aplicação (pelo próprio MinC).
Em todos esses casos, o projeto relega as definições a um futuro decreto (regulamento). Em sua defesa, o MinC tem alegado que "deixar para o regulamento" seria uma forma de não "engessar a lei". O que o MinC vê como um inconveniente, contudo, é tido pelas Constituições democráticas como imprescindível e pela Constituição brasileira como uma garantia fundamental de todos os cidadãos.
A violação ao princípio da legalidade gera inevitavelmente lesão a diversos outros princípios, igualmente previstos pela nossa Constituição. Além disso, é sempre grande o perigo de que o debate passe a girar em torno não do texto em consulta pública, mas do discurso daqueles que o propuseram. É isso o que está ocorrendo neste momento: não se discute o projeto em si, mas apenas entrevistas e pronunciamentos de representantes do MinC a respeito dele (em que autoridades dizem conter no projeto disposições que ele, de fato, ainda não contém).
Em suma, a proposta apresentada é inconstitucional e precisa ser prontamente reformada, devendo o próprio MinC reconhecê-lo o quanto antes para o bem do próprio debate que está propondo. Afinal, será impossível para o Brasil discutir a "lei para a cultura" sem que, antes, se incorpore ao debate público uma "cultura de legalidade" -indispensável a qualquer discussão verdadeiramente democrática e republicana, como exigido pela nossa Constituição e pelo Estado democrático de Direito.


FÁBIO DE SÁ CESNIK , 34, é advogado especialista em leis de incentivo fiscal e autor dos livros "Guia do Incentivo à Cultura" e "Globalização da Cultura".
JOSÉ MAURÍCIO FITTIPALDI , 29, é advogado especialista nas áreas de cultura e entretenimento.
FERNANDO QUINTINO , 36, doutorando em pedagogia social pela Universidade de Siegen (Alemanha), é advogado especialista na área de terceiro setor.

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