São Paulo, segunda-feira, 06 de outubro de 2003 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Aborto, Estado de Direito e religião
FLÁVIA PIOVESAN e SILVIA PIMENTEL
Relativamente ao aborto, recente pesquisa registra que 63% da população defende que não se deve retroceder na legislação atualmente adotada; enquanto 33% entendem que o aborto deve ser proibido em qualquer hipótese (pesquisa Ibope, Comissão de Cidadania e Reprodução, julho de 2003). A leitura desses percentuais é condicionada pelo grau de instrução, na medida em que, no tocante à população analfabeta, 55,3% defendem a proibição absoluta do aborto (e 44,7% defendem o não-retrocesso). No tocante à população com grau superior, 90,8% defendem o não-retrocesso (só 9,2% defendem a proibição absoluta). Vale dizer, não é o componente religioso, mas, sobretudo, o grau de instrução que define a opinião da população brasileira quanto ao aborto. Adicione-se que o aborto é a 3ª causa de morte materna e a 5ª causa de internação na rede pública de saúde do país, sendo vítimas preferenciais as mulheres das camadas mais pobres da sociedade. Há, também, que enfocar o alcance dos chamados direitos sexuais e reprodutivos. Em 1994, na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, 184 Estados ineditamente reconheceram os direitos sexuais e os direitos reprodutivos como direitos humanos, construção reiterada nas Conferências de Copenhague (1994) e Pequim (1995). Tais direitos apontam duas vertentes diversas e complementares. De um lado, apontam o campo da liberdade e da autodeterminação individual, o que compreende o livre exercício da sexualidade e da reprodução humana, sem discriminação, coerção ou violência. Trata-se de direito de autodeterminação, privacidade, intimidade, liberdade e autonomia individual, em que se clama pela não-interferência do Estado. Assim sendo, não se deve impor a todas as mulheres a necessidade de observância de um único padrão moral e religioso no que se refere à interrupção de gravidez indesejada. Por outro lado, o efetivo exercício dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos demanda a existência de leis e políticas públicas que os assegurem. Importa realçar que a comunidade internacional, por meio dos comitês da ONU sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Pidesc) e sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (Cedaw), recomendou ao Estado brasileiro, após as reuniões de maio deste ano, em Genebra, e de julho, em Nova York, a adoção de medidas que garantam o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos. Ambos enfatizaram a necessidade de revisão de legislação punitiva com relação ao aborto, a fim de que o mesmo seja enfrentado como grave problema de saúde pública. O Cedaw recomenda expressamente a "eliminação de preceitos que discriminam contra a mulher, como as severas punições impostas ao aborto, permitido legalmente apenas em restritas situações". O Pidesc literalmente recomenda que a lei seja revista, para "proteger as mulheres dos efeitos do aborto clandestino e inseguro e garantir que as mulheres não se vejam constrangidas a recorrer a tais procedimentos nocivos". O mesmo comitê, inclusive, requisitou ao Brasil que providencie informações detalhadas, no próximo relatório, sobre mortalidade materna e aborto no país. A realidade brasileira reflete o quanto o princípio fundamental da dignidade humana tem sido desconsiderado na área da sexualidade e da reprodução, em que a desigualdade entre os gêneros aparece de uma forma perversa, em muito devido à influência de ideologias religiosas. A exigência do Estado laico, o respeito aos direitos sexuais e reprodutivos, bem como à liberdade e à autodeterminação individual, devem prevalecer em face de ortodoxias religiosas. Os católicos e outros religiosos têm o direito de constituir suas identidades em torno de seus princípios e valores, pois são parte de uma sociedade democrática. Mas não têm o direito de pretender hegemonizar a cultura de um Estado constitucionalmente laico. Flávia Piovesan, 34, professora doutora de direito constitucional e direitos humanos da PUC-SP, é procuradora do Estado e membro do Cladem-Brasil (Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher). Silvia Pimentel, 63, professora doutora de filosofia do direito da PUC-SP, é membro do Conselho Diretor da Comissão de Cidadania e Reprodução e coordenadora nacional do Cladem-Brasil. Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Fernando Bezerra: O São Francisco de volta Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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