São Paulo, sábado, 06 de novembro de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O atual projeto de lei sobre crimes de informática deve ser aprovado pela Câmara?

NÃO

Projeto gera criminalização de massa

RONALDO LEMOS

O projeto de lei sobre crimes eletrônicos, conhecido como "Lei Azeredo" (PL 84/99) por causa de seu principal defensor, o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG), foi rejeitado de forma veemente pela sociedade brasileira.
Apenas uma petição obteve 158 mil assinaturas contrárias, número que continua a crescer. O projeto foi taxado por grupos da sociedade civil de "AI-5 Digital", acusado de promover o vigilantismo e a criminalização de massa.
Apesar do tom forte dessas críticas, a sociedade civil brasileira tem razão em apontá-las.
Por conta da reação pública, muitos julgavam o projeto morto. Estavam errados. No dia 5 de outubro, logo após o primeiro turno das eleições, quando a atenção pública estava concentrada no pleito, o projeto voltou a tramitar.
Recebeu parecer favorável a sua aprovação por parte de deputado que não foi reeleito, Régis de Oliveira (PSC-SP). Ele aproveitou para apresentar novo texto, que piorou a redação original, tornando a preocupação ainda mais atual.
Da forma como se encontra, o PL 84/99 apresenta redação excessivamente ampla e criminaliza condutas cotidianas. Por exemplo, um consumidor que possui um celular bloqueado e efetua seu desbloqueio ficaria sujeito a pena de três anos de reclusão. Quem transfere músicas legalmente adquiridas de um iPod para o seu próprio computador estaria sujeito à mesma pena.
Vale notar que todas essas condutas são legais em outros países, incluindo os Estados Unidos. Dois estudos técnicos do Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da FGV apresentam em detalhes esses pontos e propõem redações alternativas que evitam os problemas. Os estudos estão disponíveis no link: bit.ly/d39SKi.
Além disso, é importante notar que a redação do substitutivo do PL 84/99 de fato abre espaço para o vigilantismo. Por exemplo, obriga a guarda de dados dos usuários, tais como registros de conexão e de acesso a sites da internet, por prazo excessivamente longo (três anos).
Mais grave, permite a entrega desses dados à autoridade policial sem a necessidade de ordem judicial prévia, o que é inconcebível em um Estado democrático de Direito.
Estabelece ainda que provedores devem "informar de maneira sigilosa à autoridade competente denúncia da qual tenham tomado conhecimento que contenha indícios da prática de crime". Essa redação transforma os provedores em entidades policialescas, ficando ainda sujeitos a multa de até R$100 mil reais por cada requisição de informações não atendida.
Os defensores do projeto alegam que ele concretiza no Brasil as disposições da Convenção de Budapeste para combate aos crimes digitais.
O Brasil não é signatário dessa convenção e não participou de suas negociações. A Convenção de Budapeste possui baixíssima adesão na esfera internacional, contando com apenas 30 países signatários. Nenhum deles latino-americano.
Por fim, cumpre notar que o interesse de combate aos cibercrimes é legítimo. Esse combate é fundamental, por exemplo, para coibir fraudes bancárias. É possível fazer isso de forma equilibrada, sem ferir direitos fundamentais nem criminalizar práticas cotidianas.
Além disso, é preciso estabelecer antes uma legislação civil para a internet brasileira. Isso está sendo feito pelo Ministério da Justiça, com o chamado Marco Civil da Internet, que criou um processo para receber contribuições públicas de todo o país. A partir delas, foi construído um anteprojeto de lei que deverá ser enviado em breve ao Congresso.
A internet é um insumo crucial para o desenvolvimento do país neste século. A lei deve ser capaz de promover inclusão e inovação. Partir para a criminalização, nos termos do PL 84/99, é um erro.


RONALDO LEMOS, 34, mestre em direito pela Universidade Harvard e doutor em direito pela USP, é diretor do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV e colunista da Folha .

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