São Paulo, quarta-feira, 07 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Autoridade na universidade

GIL DA COSTA MARQUES

A universidade é o espaço da diversidade de opiniões, de idéias e de visões de mundo. Contestar, gerar idéias e teorias é uma postura requerida para o avanço do conhecimento. A boa universidade é necessariamente plural.
Para valorizar e proteger a enorme diversidade existente na universidade não devem prevalecer, para efeitos institucionais, as posições individuais ou de grupos, mas as do coletivo. Por isso, as principais decisões são tomadas em órgãos colegiados, cuja composição privilegia o mérito acadêmico e contempla todos os partícipes da universidade. Nesse contexto, o princípio básico de um bom líder consiste em respeitar as divergências e agir em conformidade com o interesse da coletividade.
Na academia só é possível que um indivíduo exerça influência, ou autoridade, por meio dos seus dotes intelectuais. Tradicionalmente, a reputação de um intelectual é construída de modo lento, pelas avaliações cuidadosas e criteriosas da sua obra, pelas críticas dos seus pares, pelas impressões dos seus leitores, alunos e colegas. A autoridade não é imposta, mas decorre da qualidade de sua produção científica e intelectual, da atuação como docente e da força dos seus argumentos. A autoridade decorre, enfim, da liderança acadêmica.


Qualquer denúncia deve ser feita com apego total e exclusivo a fatos, interpretados dentro de contextos específicos


Desnecessário fazer aqui uma apologia do papel da intelectualidade no desenvolvimento da cultura de um país e na formação de uma consciência nacional. Não é inadequado, assim, afirmar que também da qualidade dos seus intelectuais dependem os destinos de um país. Cabe aos intelectuais, através da busca da verdade, contribuir para a construção de uma sociedade desenvolvida e embasada no conhecimento e na justiça. A ética não permite que um intelectual terceirize o seu papel ou veicule versões de fatos dos quais tem informações apenas parciais.
A universidade é avessa à intolerância e à coerção. O desafio dos seus dirigentes é mantê-la em funcionamento, como a sociedade precisa, sem violar os princípios que norteiam a academia. Para tanto, são indispensáveis serenidade e sabedoria, como têm demonstrado, por exemplo, os reitores das universidades paulistas na presente situação de greve.
Volto-me agora para os episódios recentes ocorridos no Instituto de Física da USP, do qual sou o diretor, e que foram tratados de maneira equivocada, nessa prestigiosa coluna, como exemplo de falta de autoridade na universidade ("Falta de autoridade", Denis L. Rosenfield, pág. A3, 1º/7).
Há cerca de um mês, alguns docentes propuseram uma alteração do regimento do instituto que mudaria substancialmente a composição da Congregação, seu órgão colegiado máximo. Tinham pressa e, por isso, exigiram uma reunião num prazo máximo de oito dias. Nessa reunião extraordinária, outros membros da Congregação, incluindo docentes e alunos, contestaram a urgência da deliberação sobre tema de tal relevância. Em particular, os representantes dos alunos defenderam a insuficiência da discussão sobre o tema. Num dado instante, outros estudantes, que estavam reunidos do lado de fora, invadiram, de forma ruidosa, o recinto no qual a reunião transcorria. Ainda que não tenham utilizado para isso de força física contra pessoas ou o patrimônio, tal atitude é intolerável e nada a justifica, uma vez que desrespeita a diversidade de opiniões e as regras explícitas ou tácitas de funcionamento institucional. A invasão impossibilitou o prosseguimento daquela reunião.
Cerca de 15 dias depois, a Congregação se reuniu novamente para deliberar sobre o tema, cuja discussão fora interrompida. A nova reunião ocorreu com a presença dos representantes dos estudantes e de forma tranqüila. Todavia, para surpresa de muitos, os mesmos docentes, que antes tinham pressa na votação do assunto, agora pleiteavam um prazo maior para a apreciação do tema. Dessa forma, a Congregação decidiu, afinal, praticamente por unanimidade de votos, pelo adiamento da discussão.
Essa é a forma com que, na universidade, usa-se de autoridade numa situação de conflito: são criadas as condições para que os mecanismos institucionais de deliberação possam ser acionados com racionalidade e, preferencialmente, concórdia.
Esses são os fatos que ocorreram no Instituto de Física e o seu contexto. Eles diferem, na completeza e na contextualização, dos relatados nessa coluna por acadêmico distante 1.000 km deles. Em particular, a comparação das ações dos estudantes com as praticadas pelo crime organizado é ofensiva e totalmente descabida. Com essa comparação, o acadêmico mostrou desconhecimento dos estudantes da USP.
Qualquer denúncia deve ser feita com apego total e exclusivo a fatos, interpretados dentro de contextos específicos. A análise dos fatos pode se tornar complexa em função das suas várias versões, inevitáveis em situações de conflito. A prudência recomenda que essa complexidade seja devidamente considerada. É por esse motivo que os dirigentes devem ser responsáveis quanto ao exercício de sua autoridade, respeitando os valores institucionais e de convivência. É assim que é estabelecida e reconhecida a autoridade na universidade.

Gil da Costa Marques, 58, é diretor do Instituto de Física da USP. Foi presidente da Sociedade Brasileira de Física e prefeito do campus da USP na capital.


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