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FERNANDO RODRIGUES
Memórias de Heliópolis
BRASÍLIA - Vivo em Brasília há
mais de uma década por dever de
ofício, mas passei parte considerável de minha infância e adolescência no ABC, em São Caetano do Sul,
o "C" da região do ABC.
Nos anos 70, a diversão dos meninos sem opção de lazer nas poluídas
tardes sulsancaetanenses era subir
até o "barrocão", o morro separando São Caetano de São Paulo. Só
existia um edifício, o hospital Heliópolis. Em volta, vários campos de
futebol de terra. Era chegar e jogar.
O ambiente bucólico oferecia também uma mina de água.
Os anos foram passando. Os campos, rareando. Chegaram os barracos. Depois, as horrendas microcasas populares construídas por Jânio Quadros. E alguns prédios malfeitos, como pombais, edificados
sobre os antigos campinhos.
Hoje, Heliópolis é a maior favela
de São Paulo. Na apuração de Laura
Capriglione, ontem na Folha, pode
ter até 125 mil habitantes. Dá a impressão, errada, de estar ali há um
século. Há 35 anos quase não existia. Como toda favela, floresceu no
vácuo da ausência do Estado.
Uma garota de 17 anos morreu
baleada em Heliópolis num tiroteio
envolvendo policiais de São Caetano. A população reagiu. Incendiou
carros. Alguns enxergaram nos atos
o dedo de traficantes.
É raro no Brasil haver manifestações coletivas iradas. Quando os
protagonistas são de baixa renda,
logo alguém atribui o fato ao crime
organizado. Como se pobre não
soubesse reclamar sozinho. Muitos, certamente a maioria dos moradores de Heliópolis revoltados,
eram só cidadãos de bem incomodados com o descaso do Estado.
Protestos violentos são sempre
condenáveis. Manifestações de repúdio podem ser pacíficas e vigorosas ao mesmo tempo. Os campinhos de terra não voltam mais na
divisa entre São Paulo e São Caetano, mas o Brasil ficará melhor
quando mais brasileiros se indignarem como os de Heliópolis.
frodriguesbsb@uol.com.br
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