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RUY CASTRO
Comparação cínica
RIO DE JANEIRO - Se alguém
quiser passar uma temporada no
inferno sem sair de casa, basta ser
vizinho de um baile funk. Todos os
que já se viram condenados a tal
destino -e, por causa dele, consideraram a ideia de trucidar alguém ou
de se matar- sabem disso. O apartamento treme, as janelas vibram,
os vidros trincam e os órgãos do infeliz parecem desprender-se dentro do organismo.
Não adianta aplicar algodão às
orelhas, trancar as janelas, calafetar
as frestas e ligar o ar-condicionado
-o batidão entra do mesmo jeito,
produzido por 64 subwoofers alimentados por um sistema de 30 mil
watts. São eles que levam aqueles
graves para bairros inteiros.
A lei estadual que restringia a
realização de bailes funk no Rio
acaba de ser revogada pelos deputados. Com isso, eles revogaram também uma outra lei, muito mais universal e antiga: a do silêncio. Ninguém dorme antes de 5 da manhã
nas proximidades de um baile funk.
Quem é contra o baile funk é chamado de preconceituoso, e seus defensores cometem o cinismo de
compará-lo ao samba, que, um dia,
também foi perseguido. De fato, no
começo dos anos 1910, segundo
uma célebre história, o sambista
Donga teve seu pandeiro tomado
pela polícia. Pois, queixando-se ao
senador Pinheiro Machado, então o
homem mais poderoso da República, Donga ganhou um pandeiro novo, autografado pelo político. Tempos em que, apesar de "perseguido",
um sambista tinha acesso a alguém
tão importante.
O samba era malvisto por sua associação inicial com o candomblé.
Diluída ou desfeita essa associação,
restou a música, produzida desde
sempre por um grupo acústico de
flauta, violão e cavaquinho, adorada
pelo Brasil e ideal para embalar insones em serenatas. E sua beleza
nunca precisou de 64 subwoofers
para se fazer ouvir.
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