São Paulo, domingo, 08 de fevereiro de 2004

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A "nova política cambial" não é nova

ALEXANDRE SCHWARTSMAN


A "nova política cambial" tem muito pouco de "nova" e menos ainda de "cambial"


O anúncio relativo à recomposição de reservas pelo Banco Central tem dado margem a interpretações acerca das "reais intenções" do BC e a avaliações incorretas do impacto dessa política sobre a dívida pública e a política monetária. Para esclarecer esses assuntos, mostramos que: (1) a "nova" política é a continuação da executada pelo Tesouro Nacional em 2003; (2) a aquisição de reservas não altera a dívida pública líquida, apenas sua composição; (3) impactos monetários estão superestimados; e (4) essa política não objetiva definir "pisos" ou "tetos".
Ao final de 2003, as reservas equivaliam a US$ 49,3 bilhões e -descontado o empréstimo do FMI bem como os títulos emitidos pelo Brasil em poder do BC e outros ajustes- as reservas líquidas ajustadas não passavam de US$ 17,4 bilhões. Considerando que grande parte desses recursos terá que ser devolvida ao FMI nos próximos anos, se nada fosse feito, as reservas líquidas ajustadas permaneceriam em patamares baixos face ao tamanho da economia. A regra prudencial sugere, dessa forma, que se busque recompor reservas para colocar o país numa posição mais confortável.
A política de aquisições de divisas pelo Tesouro em 2003 atendeu essa regra. Embora os dólares comprados pelo Tesouro não apareçam nas reservas, em condições normais o Tesouro os compraria do próprio BC; a compra de dólares, portanto, poupou reservas. Isso não é diferente de um procedimento no qual o BC comprasse esses recursos para depois ofertá-los ao Tesouro, isto é, a "nova" política é igual à anterior.
A esse respeito vale dizer que o efeito dessa política sobre a dívida pública é exatamente o mesmo nos dois casos. Quando o Tesouro é o agente das compras, há um saque da Conta Única que implica um aumento da base monetária a ser compensado por emissão de dívida pública, o que se repete no caso do BC. No entanto, trata-se de um aumento da dívida interna, compensada por uma queda igual da dívida externa líquida.
Assim, o que muda é a composição da dívida, mas não seu tamanho, em favor da parcela denominada em reais. Além disso, a redução da dívida em dólares reduz a vulnerabilidade do balanço patrimonial do setor público às flutuações da moeda. Portanto, essa política também representa uma boa prática prudencial no que se refere à dívida pública, muito semelhante à decisão de diminuir a parcela da dívida doméstica indexada à taxa de câmbio, que vem sendo implementada desde 2003.
Tanto as compras do Tesouro como as do BC têm impacto monetário, como mencionado acima, porém é necessário lembrar como funciona o mecanismo de política monetária no país. O BC define, a cada reunião do Copom, uma meta para a taxa Selic: se as compras do Tesouro ou do BC elevam a base monetária e fazem a taxa interbancária cair abaixo da Selic, os bancos têm incentivos para emprestar esses recursos ao BC. Quer dizer, o BC "enxuga" o excesso de liquidez resultante das compras do Tesouro ou de suas próprias intervenções.
Há, todavia, um argumento mais elaborado no que se refere ao impacto da recomposição sobre a política monetária, alegando que as compras do BC impediriam uma apreciação da taxa de câmbio, que poderia reduzir mais rapidamente a inflação. Isso é correto, mas precisava ser qualificado, pois toda definição de determinada política pode impor alguma espécie de restrição às demais.
Não é necessário um grande exercício de imaginação para ver como as políticas fiscal e monetária se condicionam mutuamente em qualquer país. O problema não está nas restrições mútuas, mas em eventuais inconsistências que podem emergir caso haja mais objetivos que instrumentos, o que não é o caso. A taxa de juros continua sendo determinada para manter a inflação na trajetória de metas; a política fiscal, para controlar a relação dívida/PIB; e a política de recomposição de reservas, para reduzir a vulnerabilidade de balanço de pagamentos e balanço patrimonial do setor público.
Nesse sentido, a noção de que o BC perseguiria uma meta para a taxa de câmbio contraria precisamente esse arranjo entre objetivos e instrumentos. Se o BC tivesse tal meta, não haveria como implementar uma política monetária independente: as intervenções deveriam ser acompanhadas de uma redução da taxa de juros, sem considerações acerca da trajetória de inflação. Caso contrário, a suposta tentativa de se estabelecer um "piso" para a taxa de câmbio estaria destinada ao fracasso, pois a intervenção esterilizada não afetaria o incentivo para novos ingressos.
Em outras palavras, se o BC estivesse mesmo determinado a "puxar" o câmbio para cima, a combinação de política estaria errada. Se, porém, a distribuição de objetivos e instrumentos é como a descrita acima, a atuação da política monetária segue a boa prática econômica. À luz disso, cabe aos descrentes da manutenção do regime de metas explicar por que o BC, sabendo das limitações de uma política de intervenções esterilizada, insistiria em praticá-la.
Resumindo, a "nova política cambial" tem muito pouco de "nova" e menos ainda de "cambial". Trata-se da continuação de uma política de recomposição de reservas com o objetivo de redução da vulnerabilidade do balanço de pagamentos do país e do balanço patrimonial do setor público. Como destacado no momento do seu anúncio, não objetiva estabelecer outras metas para o BC, como a fixação de "pisos" e "tetos" para a taxa de câmbio, mas sim gradualmente recompor reservas, de forma pautada pelas condições de liquidez existentes a cada momento, com o objetivo de não adicionar volatilidade ao mercado cambial nem introduzir uma tendência de flutuação na taxa de câmbio.

Alexandre Schwartsman, 41, doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), é diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central do Brasil.


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