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CARLOS HEITOR CONY
O pião e a carrapeta
RIO DE JANEIRO - Era brinquedo de pobre, mas todos, até mesmo os meninos ricos, tinham o seu pião. Parece
que não existem mais, mas, na minha rua, o guri que não tinha o seu
pião e não era mestre no ofício de rodá-lo no chão ou na palma da mão
tornava-se qualquer coisa de abominável, um ser hediondo execrado pelos outros garotos.
Nunca fui bom de pião, insistia com
o pai, ele comprava os melhores, mas
eu não os fazia girar com a perícia
adequada. Tantas levei pela cara que
o pai, para me consolar, falou mal
dos piões, de todos os piões ("é brinquedo de moleque") e deu-me uma
carrapeta suntuosa, com frisos amarelos, azuis e vermelhos, fazia um
som civilizado quando rodava.
E era fácil de manejar. Bastava dar
corda e ela se empinava, rodava loucamente, imóvel em seu eixo de lata,
e o zumbido que fazia, cortando o ar,
parecia o fundo musical de um pedaço do paraíso.
É bem verdade que os outros guris
me olhavam desconfiados, achando
que carrapeta era coisa aveadada e,
pensando bem, eu próprio também
achava o brinquedo meio suspeito.
Até o dia em que um garoto chegou-se para o meu lado e, como se fizesse uma proposta indecente, sugeriu que trocássemos de equipamento.
Ele me daria o seu pião, o mais famoso e letal daquela rua, que partia ao
meio os piões adversários. E eu lhe
daria a carrapeta faiscante, que girava como um planeta sonoro enquanto lhe durava a corda.
Cheguei em casa e o pai descobriu o
péssimo negócio que o filho fizera.
Num primeiro momento, pensou em
procurar o guri e desfazer a troca. É
evidente que se aproveitara da minha ingenuidade ou da minha cobiça
em ter um pião igual ao dos outros.
Pensou melhor. Olhou-me fundo,
avaliou o pião escalavrado e sebento
que eu trazia como um troféu. E lançou a profecia que se realizaria pela
vida afora: "Você nunca será alguém,
meu filho!".
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