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Invasões legitimadas
DENIS LERRER ROSENFIELD
Só os ingênuos ou as pessoas de má-fé
acreditam que as "invasões" (ditas "ocupações")
são pacíficas
O BRASIL está assistindo a uma
onda de invasões dos movimentos ditos sociais, que já
não se sentem amarrados pela velha
bandeira do latifúndio improdutivo.
Devemos atentar para um ponto
central da estratégia do MST, consistente em sua preocupação de ocupar
os meios de comunicação em geral.
As invasões só são eficazes se contam com o apoio da opinião pública,
em que repercutam e que termine por
incentivá-las. Sem esse apoio, elas
apareceriam como meros atos criminosos, de ruptura com o Estado de Direito e de violação arbitrária do direito de propriedade.
Assim, reveste-se de particular importância artigo de Plinio de Arruda
Sampaio publicado nesta Folha ("A
luta pelo direito", "Tendências/Debates", 28/3), defendendo uma ampliação dos movimentos sociais para
as cidades. Terra converte-se em
imóvel, como se fosse um direito que
prescindisse do trabalho e do esforço.
Um artigo desse tipo não é um ato
isolado. Ele responde a uma estratégia que funcionaria por etapas: a formação preliminar da opinião pública
e a ação de organizações, como o
MST, que se preparam para invasões.
Sob essa ótica, ganha particular relevância a entrevista de Gilmar Mauro, da Coordenação Nacional do
MST, ao próprio movimento. Lá é dito que um dos objetivos dessa organização política reside na aliança entre
os ditos movimentos do campo e os
da cidade, prenúncio, na verdade, de
uma crise da democracia brasileira.
Mudança do país, para o MST, significa instaurar uma sociedade socialista autoritária, relativizando, senão
banindo, o direito de propriedade, a
economia de mercado e o Estado de
Direito. Trata-se de aliança com os
desempregados urbanos, que seriam
usados como massa de manobra para
a invasão de prédios urbanos desocupados, repetindo na cidade o esquema já utilizado no campo brasileiro.
Plinio de Arruda Sampaio tem se
destacado por defender a "causa" do
MST. Pode-se dizer que é um teórico
do movimento emessetista, que apregoa uma utilização dos mecanismos
da democracia representativa para
subverter essa mesma democracia.
Trata-se da supressão da democracia
por meios democráticos, tanto mais
indolor que menos sentida.
O seu artigo, nesse sentido, se caracteriza por uma relativização do direito de propriedade urbano, que, no
seu entender, deveria ser totalmente
banalizado em proveito dos "sem-teto", dos "desempregados". Ele procura oferecer subsídios jurídicos para
esses atos ditos de "ocupação", que se
tornariam, assim, legais.
Seguindo uma ótica marxista, o autor responsabiliza o setor imobiliário
por todos os problemas de moradia
no país e, em particular, em São Paulo. A causa principal de ausência de
moradias seria a "especulação imobiliária", e não, por exemplo, os altos juros até recentemente pagos pelas
construtoras, a falta de uma política
de regularização fundiária nas favelas, a burocracia e a insegurança jurídica de quem investe.
Ou seja, não seria o Estado que teria essa responsabilidade, como se os
altos impostos pagos não tivessem
nenhuma serventia social. Não, os
responsáveis seriam os proprietários
de imóveis e o "capital imobiliário".
A cena está armada. O Estado é
desresponsabilizado, os proprietários
e empresas, responsabilizados, e está
preparado o caminho para o MST (no
caso, MUST) iniciar o que passa a ser
chamado de "ocupação de terrenos
públicos e privados", e não "invasão".
O vocabulário é aqui importante,
pois o autor visa a tornar essa violação da propriedade privada em algo
legal, como se esta fosse um bem sem
dono, que deveria apenas ser "ocupado". Por sua vez, o termo "invasão" sinalizaria que se trata de um crime, de
uma ação ilegal, que deveria ser contida e inviabilizada. Seu objetivo consiste em criar uma "opinião pública"
que "iniba a repressão".
A pedagogia revolucionária orienta
tal tipo de atitude. É dito que a massa
organizada por "grupos políticos sérios" -leia-se MST e organizações
afins- passe a agir graças à conscientização da qual ela é objeto. Logo, as
ações são anunciadas como de "ocupação de terrenos vazios", de modo
que ocorreria um movimento de instabilização urbana similar ao que já
ocorre no campo, com o fortalecimento de organizações de caráter revolucionário, que se aproveitam dos
sentimentos morais da população
brasileira para legalizar a sua atuação
baseada na violência.
Só ingênuos ou pessoas de má-fé
acreditam que as "invasões" (ditas
"ocupações") são pacíficas. O que está
se preparando é um tipo de ação urbana do MST que precisa, no entanto,
legitimar-se primeiro com a opinião
pública. É a função mesma do artigo.
DENIS LERRER ROSENFIELD, 57, doutor pela Universidade de Paris 1, é professor titular de filosofia da UFRGS
(Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e editor da revista "Filosofia Política". É autor de "Reflexões sobre o
Direito à Propriedade", entre outros livros.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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