São Paulo, quinta-feira, 09 de maio de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O macaco e o peixe

ALBERTO SILVA FRANCO

O relatório final da Comissão Parlamentar Mista Especial, criada com o propósito de "levantar e diagnosticar as causas e os efeitos da violência que assola o país", não retrata, em verdade, nenhum desses difíceis e intrincados objetivos e se resume a partir do pressuposto simplista de que a violência é "a grande vilã dos problemas nacionais", à proposta de "saídas inteligentes e ágeis".
Para tanto, aprovou 23 projetos de lei que deverão ser votados, no Congresso Nacional, "antes de junho próximo", de forma a inaugurar, como frisa o relatório, "um novo ciclo de bem-estar e paz social no país", no qual "o combate à violência pode ser viabilizado por meio de técnicas e métodos adequadamente empregados, na busca do bem-estar comunitário, do direito à liberdade e à tranquilidade". E isto, continua o relatório, sem desrespeito à doutrina dos direitos humanos, que não se pode confundir com "sistemática depreciação às instituições policiais e oposição à contenção da criminalidade".
Destarte, de acordo com a comissão parlamentar, "quem defende os direitos humanos da sociedade não quer que os policiais cruzem os braços, mas sim que sejam competentes, usando a força segundo as necessidades, operando de acordo com as leis em circunstâncias que exijam a ação policial".
Basta essa pequena síntese do relatório final da Comissão Parlamentar Mista Especial para que se tenha uma noção bastante clara dos caminhos trilhados e do conteúdo dos projetos nela aprovados, alguns deles ainda não conhecidos em seu inteiro teor.
Ninguém discute que a sociedade moderna é conflituosa, complexa e violenta, mas é de todo insuportável que se reduza o conceito de violência pura e exclusivamente à criminalidade, como dois conceitos superpostos. Ainda que se supere essa restrição inicial, é forçoso convir que nenhum equacionamento do tema violência/crime pode ser corretamente feito no tempo recorde de um mês e poucos dias; e, além disso, com evidente ofensa a direitos humanos e a garantias constitucionais e com exclusiva preocupação de aumentar substancialmente o poder repressivo estatal, através do fortalecimento da polícia e do Ministério Público, em limites nunca dantes imaginados.
Os projetos de lei até agora conhecidos, se aprovados no tempo pretendido, sem discussão com a sociedade civil, com as universidades e com os institutos especializados, não passam, em verdade, de uma perigosa caricatura da real situação brasileira e de suas exigências. Há uma visão unilateral dos problemas de segurança, que são articulados de forma a exacerbar e ampliar os poderes policiais e de colocar a prisão como o componente mais relevante da política criminal.


É de todo insuportável que se reduza o conceito de violência pura e exclusivamente à criminalidade


Como observa Zygmunt Bauman ("Globalização", Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro), "o que sugere a aceleração da punição através do encarceramento (...) é que há novos e amplos setores da população visados por uma razão ou outra como uma ameaça à ordem social e que sua expulsão forçada do intercâmbio social através da prisão é vista como um método eficiente de neutralizar a ameaça ou acalmar a ansiedade pública provocada por essa ameaça".
Além disso, a confiança na prisão como instrumento destinado a resolver "os problemas definidos como irritantes ou provocadores de ansiedade" se transformou "em importante questão de disputa eleitoral: as forças em confronto, mesmo que um abismo as separe em questões polêmicas, tendem a manifestar um acordo completo" a respeito da prisão; e "a única preocupação publicamente exibida é a de convencer o eleitorado de que será mais decidida e impiedosa em prender criminosos do que seus adversários políticos".
Foi essa a linha de atuação da Comissão Parlamentar Mista Especial, na qual direita e esquerda unificaram seus discursos e bateram na mesma tecla repressora: criação de um grande número de figuras criminosas; alargamento, de forma desmesurada, de penas já cominadas em relação a outros tipos; e reformulação substancial do Código de Processo Penal, sob pretexto de evitar a morosidade da Justiça.
E tudo isso sem nenhum cuidado técnico na estruturação tipológica; com um desequilíbrio ainda maior do já desequilibrado sistema punitivo brasileiro; com a introdução de modificações extremamente perigosas no sistema processual penal, que atentam contra garantias constitucionais há muito consagradas; e com o objetivo, através de uma representação dramatizada da sociedade brasileira, de aquietá-la simbolicamente.
Não cabe, nos limites deste artigo, discutir os vários absurdos contidos nos projetos aprovados pela comissão, mas, diante da missão salvacionista que os congressistas, às vésperas do período eleitoral, se impuseram e das propostas esdrúxulas apresentadas, vem a pêlo a história ouvida de um aldeão africano, narrada em entrevista de Mia Couto no jornal "El País", em 28 de abril último:
Um macaco estava à beira de um rio e viu um peixe dentro d'água. E disse: "O animal está se afogando". Então, meteu a mão na água e o apanhou. O peixe começou a se agitar. O macaco, então, disse: "Como o peixe está contente!". Quando o peixe morreu, o macaco falou: "Que pena! Se eu tivesse chegado antes...".


Alberto Silva Franco, 70, desembargador aposentado, é vice-presidente do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e membro da Associação Juízes para a Democracia.



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