São Paulo, domingo, 09 de maio de 2004

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FALLUJAH E NAJAF

Um editorial do "The New York Times" já qualifica a invasão do Iraque como "um sonho ruim". As forças americanas, pela primeira vez, se viram forçadas a negociar com os insurgentes, relaxaram o cerco a Fallujah e, de modo bizarro, instalaram um ex-general de Saddam Hussein no comando dessa cidade. O general e os insurgentes comemoraram hasteando a bandeira iraquiana dos tempos do ditador.
O duplo impasse que se desenrola na sunita Fallujah e na xiita Najaf sinaliza uma nova etapa no conflito. O filósofo Ernest Renan, um dos pais do nacionalismo francês, definiu nação como "um plebiscito cotidiano". Ele queria dizer que a identidade nacional dos indivíduos não deriva da sua etnia, língua ou cultura, mas da vontade. Em Fallujah e Najaf, os árabes sunitas e xiitas que combatem as forças de ocupação estão tomando parte num "plebiscito nacional" -e estão dizendo que são iraquianos.
O Iraque foi inventado pela astúcia britânica, ao fim da 1ª Guerra, por meio de fronteiras arbitrárias traçadas sobre o mapa do decomposto Império Otomano. Londres queria o petróleo e o controle sobre o que a imaginação imperialista chamava "a retaguarda da Índia". Montaram um quebra-cabeças formado por três peças incongruentes, cujos pólos eram o porto de Basra, no sul xiita da Mesopotâmia, Bagdá, na Mesopotâmia central sunita, e Mossul, no Curdistão. O novo país foi declarado mandato britânico pela Liga das Nações.
A construção improvável de 1920 desmoronou algumas vezes, mas foi recomposta pela ditadura do Partido Baath. O Estado iraquiano, uma estranha mistura de modernidade pan-arabista e tradição tribal, estruturou-se em torno do partido único nacionalista e totalitário, cujo núcleo de poder era o clã sunita de Tikrit, a cidade natal de Saddam. A repressão, às vezes extremamente sangrenta, contra a maioria xiita e a minoria curda funcionou como instrumento essencial de manutenção da unidade.
Os EUA ocuparam o Iraque usando o pretexto das armas de destruição em massa e desfraldando a bandeira da construção de um Estado-nação democrático. Mas, assim como o pretexto, a bandeira desfez-se em frangalhos. Hoje, a imagem que sintetiza a ocupação é a do centro de tortura instalado em Abu Ghraib, a antiga prisão do regime de Saddam Hussein, em Bagdá. Entretanto, desafiando algumas profecias pessimistas, os componentes sunita e xiita do Iraque não parecem caminhar no rumo da guerra civil: pelo menos por hora, eles descobriram um inimigo comum nas forças de ocupação.
Na sua linguagem habitual, George W. Bush atribui as revoltas de Fallujah e Najaf a "terroristas estrangeiros" e "fanáticos radicais". Certamente uns e outros existem na terra sem lei em que se transformou o Iraque, mas é cada vez mais evidente que se está configurando uma resistência nacional à ocupação.
Diversas nações na África e na Ásia forjaram um sentimento de identidade e unidade combatendo o domínio estrangeiro. O Iraque começa a trilhar esse caminho. Por uma ironia da história, do modo mais doloroso e inesperado para Washington, a ocupação americana poderá de fato gerar um Estado-nação no Iraque.



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