São Paulo, quarta-feira, 09 de junho de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

No banco dos réus

RIO DE JANEIRO - Cavacos do ofício me obrigavam, volta e meia, a comparecer às varas criminais do foro local. Processos os mais variados, nos quais às vezes funcionava como réu ou como testemunha da defesa ou da acusação, funções que procuro desempenhar civicamente, intimado ou convidado pelos meritíssimos.
Já se deu, inclusive, que, num mesmo processo, funcionei como testemunha de defesa e de acusação: um rapaz que se entupiu de cocaína e matou um oficial da Marinha numa sexta-feira da Paixão. Entrevistei o criminoso na delegacia, encontrei-o no chão, em crise de dependência, uma baba incolor escorrendo das narinas, a língua duas vezes maior do que a boca, o pulso a zero, os guardas que o detinham não sabiam o que fazer. Descrevi o episódio numa reportagem. Tanto o promotor como os advogados de defesa apelaram para o meu testemunho.
Há tempos, já na incômoda e habitual condição de réu, lá fui sentar o cansado corpo naquele banco que o lugar-comum chama dos réus, e é dos réus mesmo: duro, abaixo do nível da sala, para esmagar o criminoso moral e topograficamente.
Um processo reles, desses que a profissão me arrasta comumente. Na audiência, era ouvida a testemunha arrolada por meu advogado. O juiz era um simpático velhinho, desses que a gostaríamos de ter como tio-avô ou padrinho, calejado no ofício de julgar humanos delitos e que, com a sabedoria da idade e da profissão, antes de terminar o processo já dera a devida desimportância aquilo que os juristas chamam de "fulcro penal".
No meio da audiência, entrou um rapaz trazendo uns cartões: era o resultado do jogo do bicho. Sua Excelência interrompeu o depoimento da testemunha para verificar se acertara alguma coisa, uma centena cercada pelos sete lados. Comentou em voz alta que já gastara uma fortuna com os bichinhos, mal e porcamente pegava uma dezena mixuruca. Mas conhecia um sujeito que já ganhara no milhar 13 vezes. E declarou para culpados e inocentes: "Não há justiça nesse mundo!".


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