São Paulo, terça-feira, 09 de julho de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Campanha para inglês ver

JAMES LOUIS CAVALLARO e ISABEL PERES

No dia 26 de junho, Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura, o governo lançou os resultados da sua "Campanha contra a Tortura", principal iniciativa das autoridades federais para lidar com o que um relatório oficial da ONU classificou como prática "amplamente divulgada" e "sistemática" no Brasil. Por parte da sociedade civil, cabe, nesse último ano do governo Fernando Henrique, distinguir o que foi solenemente anunciado do que foi efetivamente concretizado não só em relação à campanha, mas também no que diz respeito aos oito anos de governo.
Em geral, a postura do atual governo tem sido caracterizada pelo reconhecimento da existência das violações, assim como pela disposição de trabalhar com a sociedade civil no desenho de políticas públicas para combater essas violações dos direitos humanos -entre elas, os dois Programas Nacionais de Direitos Humanos, lançados em 13 de maio de 1996 e na mesma data este ano. No entanto muito pouco tem sido feito para implementar medidas que efetivamente ponham fim à tortura.
Talvez o exemplo mais claro dessa falta de efetividade tenha sido a lei 9.455/ 97, que tipifica o crime de tortura. Nos primeiros dois anos após a sua aprovação, não houve nenhuma condenação de autoridade policial nem de agente penitenciário.
Em maio do ano passado, em Genebra, por ocasião das sessões do Comitê contra a Tortura, o governo entregou o seu diagnóstico sobre a situação da tortura no Brasil. Nesse relatório, o Estado brasileiro reconhece a falha absoluta no que diz respeito à repressão do crime de tortura. A sociedade civil, por sua vez, através de um grupo de ONGs de defesa dos direitos humanos, elaborou um documento avaliando a atuação do Estado no cumprimento das obrigações de combater a tortura. Essa avaliação demonstrou que a impunidade e a prevalência da prática da tortura no Brasil se devem a uma série de fatores, dentre os quais se destacam:
a) A dificuldade dos detentos e vitimas em serem ouvidos por órgãos oficiais;
b) O fato de a investigação da prática de tortura ser feita, na esmagadora maioria dos casos, pela própria polícia;
c) A falta de empenho do Ministério Público na investigação de casos com suspeitos ou presos como vítimas;
d) A jurisprudência reacionária do Poder Judiciário, que descarta a palavra da vítima quando esta contraria a versão contada pelos policiais ou agentes penitenciários envolvidos;
e) A falta de independência dos órgãos oficiais de perícia.
Ainda de acordo com a mesma avaliação, o que menos falta são denúncias de casos de tortura, pois qualquer ativista de direitos humanos que atua nessa área no Brasil sabe que o espancamento e a tortura são fatos corriqueiros nos centros de detenção neste país. Também sabe que muitas entidades da sociedade civil documentam centenas de casos exemplares, os quais, infelizmente, ao serem entregues às autoridades, não resultam nas medidas necessárias para julgar e punir os responsáveis.


A falha do combate à tortura reside na ausência de investigação eficaz e de processos jurídicos isentos


De fato, isso foi o que também constatou Nigel Rodley, então relator especial da ONU sobre a tortura, durante as três semanas que passou no Brasil, entre agosto e setembro de 2000. O relator da ONU, nesse curto espaço de tempo, pôde coletar indícios e provas em 348 casos de tortura, que constam do seu relatório sobre a visita, lançado durante sessão da Comissão de Direitos Humanos da ONU em abril do ano passado.
Como resposta a esse relatório, assim como às recomendações do Comitê contra a Tortura, o governo federal lançou uma campanha para combater a tortura. Mas, em vez de enfatizar políticas de apuração, investigação e punição dos responsáveis pela prática da tortura, o enfoque principal da campanha governamental, pelo menos na primeira fase, foi a criação e a manutenção de um serviço de disque-denúncia nacional.
Em quase oito meses de funcionamento, o disque-denúncia recebeu 944 denúncias de tortura praticada por agentes públicos dos 26 Estados e do Distrito Federal.
Cabe questionar se o disque-denúncia tem sido eficaz, pois o mesmo só funciona durante o horário comercial e contabilizou uma média de 120 denúncias por mês em todo o território nacional. Já a Pastoral Carcerária e a Acat (Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura), duas instituições com orçamentos modestos, conseguiram documentar, só em São Paulo, em dois anos, incidentes de tortura envolvendo aproximadamente 4.000 vítimas.
Mais preocupante, porém, é o que tem acontecido (ou o que não tem acontecido) após o registro da denúncia. A falha do combate à tortura não reside na falta de denúncias, mas na ausência de investigação eficaz e de processos jurídicos isentos para condenar os que praticam esse crime.
As entidades da sociedade civil, assim como a ONU, vêm apontando que, para responder ao problema da impunidade -principal causa dos altos índices de tortura no país-, seria preciso tomar medidas corajosas e com alto custo político, como: acabar com o inquérito policial; garantir a presença de um advogado e/ou de uma câmera de vídeo em toda a sessão de interrogatório de réu ou preso; criar grupos especiais de combate à tortura nos Ministérios Públicos estaduais e Federal; modificar a jurisprudência nacional sobre o ônus da prova em casos de tortura; federalizar os graves crimes contra os direitos humanos.
Para o governo, contudo, resulta muito mais fácil a mera criação de um serviço anônimo de disque-denúncia. De fato, o governo só elaborou a campanha como resposta à visita e ao relatório contundente do relator especial da ONU, o inglês Nigel Rodley.
Diante dos resultados duvidosos e da prevalência da prática da tortura no Brasil, cabe perguntar se essa também não se trata de uma campanha feita para inglês ver.


James Louis Cavallaro, 39, advogado norte-americano, é diretor-executivo do Centro de Justiça Global. Foi diretor da Human Rights Watch no Brasil (1991-99). Isabel Peres, 64, é presidente nacional da Acat (Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura).



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