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CARLOS HEITOR CONY
A dádiva
RIO DE JANEIRO - Desconfio que, pela primeira vez no ofício de cronista,
sou obrigado a dar razão a todos na
questão do rio São Francisco. Antes
de pensar em transpor um rio, há que
haver rio e, do jeito que está, em breve não haverá o que transpor.
O desmatamento e a poluição estão
secando os mananciais que criam os
afluentes do grande rio. Daí que o governo tem razão ao negociar com o
bispo que fazia greve de fome para
impedir a transposição. Há que salvar o curso de água -que não é o
maior do Brasil, mas é o mais querido e talvez o mais necessário.
Levará anos, é certo. Tempo para
repensar o projeto, evitando o seu arquivamento. O problema é técnico:
bem estudado e bem executado, beneficiará milhões de brasileiros sem
causar danos a outros tantos milhões
de brasileiros.
Se o governo teve razão no acordo,
admirei a determinação do bispo em
protestar contra uma medida que ele
considera prejudicial à região na
qual exerce a sua missão pastoral.
Seu mérito foi o de ter colocado o problema em discussão, que, a partir de
agora, tende a se tornar mais ampla.
Contudo não louvo a sua greve de
fome, recurso extremo que só se justifica quando estão em jogo a liberdade de um povo e a soberania de uma
nação. Há o exemplo de Gandhi, que
estava disposto a morrer pela independência de seu país, independência que não dependia de uma solução
técnica. Greve de fome até a morte
equivale a martírio, como o de Tiradentes, cuja luta contra o jugo estrangeiro independia de estudos e circunstâncias.
Um rio é sempre uma dádiva da
natureza. Temos o exemplo do Egito,
que, segundo Heródoto, é uma dádiva do Nilo. O São Francisco recuperado, em plena carga, terá condições de
irrigar um território maior. Experiência igual já foi feita nos Estados
Unidos e em outros países, fertilizando terras desérticas. Repito: uma
questão técnica, pela qual ninguém
merece morrer.
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