São Paulo, domingo, 09 de outubro de 2005

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CARLOS HEITOR CONY

A dádiva

RIO DE JANEIRO - Desconfio que, pela primeira vez no ofício de cronista, sou obrigado a dar razão a todos na questão do rio São Francisco. Antes de pensar em transpor um rio, há que haver rio e, do jeito que está, em breve não haverá o que transpor.
O desmatamento e a poluição estão secando os mananciais que criam os afluentes do grande rio. Daí que o governo tem razão ao negociar com o bispo que fazia greve de fome para impedir a transposição. Há que salvar o curso de água -que não é o maior do Brasil, mas é o mais querido e talvez o mais necessário.
Levará anos, é certo. Tempo para repensar o projeto, evitando o seu arquivamento. O problema é técnico: bem estudado e bem executado, beneficiará milhões de brasileiros sem causar danos a outros tantos milhões de brasileiros.
Se o governo teve razão no acordo, admirei a determinação do bispo em protestar contra uma medida que ele considera prejudicial à região na qual exerce a sua missão pastoral. Seu mérito foi o de ter colocado o problema em discussão, que, a partir de agora, tende a se tornar mais ampla.
Contudo não louvo a sua greve de fome, recurso extremo que só se justifica quando estão em jogo a liberdade de um povo e a soberania de uma nação. Há o exemplo de Gandhi, que estava disposto a morrer pela independência de seu país, independência que não dependia de uma solução técnica. Greve de fome até a morte equivale a martírio, como o de Tiradentes, cuja luta contra o jugo estrangeiro independia de estudos e circunstâncias.
Um rio é sempre uma dádiva da natureza. Temos o exemplo do Egito, que, segundo Heródoto, é uma dádiva do Nilo. O São Francisco recuperado, em plena carga, terá condições de irrigar um território maior. Experiência igual já foi feita nos Estados Unidos e em outros países, fertilizando terras desérticas. Repito: uma questão técnica, pela qual ninguém merece morrer.

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