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São Paulo, quinta-feira, 10 de abril de 2008

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O nosso "Sicko"

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI


Um PL que continua a sucatear o SUS e transformar saúde em mercadoria deve ser movido por pressões fortes e inconfessáveis


ÀS VEZES penso que o que está acontecendo com a saúde brasileira é um pesadelo, pois a vejo, por um lado, perversamente privatizada; pelo outro, irresponsavelmente sucateada.
Apesar de estarmos lutando faz tempo ao lado das associações médicas (AMB/CFM) e de defesa do consumidor (Idec, Protest, Procon) por uma normatização ética do relacionamento dos planos de saúde com usuários, prestadores de serviço e SUS, a situação vem piorando.
A lei 9.656/98 foi mudada para pior por medidas provisórias. A CPI dos planos começou no governo FHC e terminou no governo Lula sem dar em nada. A medida provisória 148, de 2003, agravou a situação, delegando poderes à ANS.
A saúde é a principal queixa dos brasileiros. Os planos, com 40 milhões de usuários, são os campeões de reclamação. O sistema público não é sequer capaz de conter a dengue. Teríamos agora a oportunidade de corrigir parte dessa situação com o projeto de lei 4.076, que tramita no Congresso Nacional, mas, surpreendentemente, ele agrega perversidades e omite correções. Menciono a seguir as mais relevantes.
1) Os planos lucram excluindo procedimentos diagnósticos e terapêuticos, que vão sendo injetados a conta-gotas -em geral, com aumento de mensalidades. Só a partir de 2/4 os planos passaram a oferecer alguns procedimentos necessários há mais de uma década, como ligadura de trompas, testes para diagnósticos de hepatite C e B, transplantes autólogos de medula. Se compararmos os procedimentos já incluídos com a lista necessária, elaborada pela AMB (CBHPM), verificaremos uma diferença, a menos, de mais de 1.200.
Quando alguém compra um plano, não imagina tais restrições.
O PL 4.076, em vez de impor a CBHPM aos planos, dificulta mais, determinando (artigo 10) que, quando houver discussão sobre procedimento não incluído, deve-se montar "junta composta por representantes da ANS, das operadoras, das sociedades médicas e dos usuários, que avaliará se os procedimentos são necessários ou não". O leitor pode imaginar a demora, o transtorno, o resultado.
2) O artigo 11 proíbe o "agravo" (acréscimo que o portador de doença crônica paga na sua prestação, por tempo limitado). Parece uma vantagem, mas, ao proibi-lo, permite que a operadora, se o cidadão for portador de doença preexistente, rescinda seu plano mesmo depois de ele ter pago 18 meses. A maioria das pessoas com mais de 60 anos têm alguma doença crônica, ficando, assim, impedidas de ter planos de saúde.
3) A permissão de aumento de 500% por faixa etária -vigente e mantida por esse PL- significa multiplicar por seis a prestação do usuário. As faixas iniciais têm pequenos aumentos; as próximas dos 60 anos, aumentos quatro vezes superiores.
Somado ao item anterior, torna-se uma operação "expulsa idoso" -com a conivência da ANS. As operadoras ficam apenas com os jovens, corporativados, que pagam e não adoecem.
4) Nos últimos dez anos, houve um aumento das prestações dos planos de saúde superior a 400% e não ocorreu nenhum aumento dos honorários -os médicos recebem, em média, R$ 25 por consulta. O PL se omite, mantendo um tratamento indigno dos médicos, que, inevitavelmente, se reflete no usuário.
5) As operadoras, por meio da ANS, são obrigadas a realizar o ressarcimento dos gastos que os usuários dos planos fizeram com procedimentos realizados no SUS. O Tribunal de
Contas da União publicou um acórdão (2006) demonstrando que a ANS, ilegalmente, deixa de cobrar cerca de dois terços do que deve ser ressarcido e consegue receber só 5,9% do cobrado. Sangra-se o SUS em R$ 1 bilhão a R$ 2 bilhões por ano, o que só aumenta o lucro das operadoras, agravando as condições do sistema público, cuja precariedade é a maior propaganda para a compra de planos privados.
Para evitar todos esses descalabros, apresentei um voto em separado, que os corrige, e fiz essas graves observações. Não houve resposta do relator, tampouco discussão. Tentou-se apenas votar o projeto original, sem modificação e no silêncio.
Um PL com essas características de perversidades e omissões, que continua a história de sucatear o SUS e transformar saúde em mercadoria, só pode ser movido por pressões fortes e inconfessáveis.
Quem assistir ao filme "Sicko", de Michael Moore, entenderá aonde já chegamos.


JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI , 73, é deputado federal (DEM-SP), professor emérito da USP e da Unicamp e membro da Academia Nacional de Medicina. Foi secretário de Ensino Superior (governo Serra), da Saúde (governo Quércia) e da Educação (governo Montoro) do Estado de São Paulo, reitor da Unicamp e presidente da Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia.

aldopereira.argumento@uol.com.br

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