São Paulo, quinta-feira, 10 de junho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

A escolha americana

SAMUEL MAC DOWELL DE FIGUEIREDO

Não são as torturas, mas a guerra, ela própria, que expõe a natureza da política praticada nos países que se consideram a civilização do Ocidente. Ela não é diversa da praticada séculos antes da era cristã, quando nenhuma norma internacional inibia as ações de conquista entre as nações, embora vigorassem, já então, regras sobre a ética da guerra. Se ela fosse melhor do que isso, seriam levados aos tribunais internacionais, por seus crimes de guerra e contra a humanidade, todos os responsáveis pelo que ocorre no Iraque, e não apenas Milosevic e Saddam Hussein. Se a ausência de limites jurídicos não estivesse indevidamente protegida pelos preconceitos infiltrados na consciência ocidental, esse julgamento ocorreria de imediato, e não depois de um tempo indefinido, no qual se pudessem contar novas mortes de civis.
À ambição da comunidade internacional pela civilização fundada na lei, correspondeu a penosa construção de um sistema multilateral entre as nações, cujo objetivo primordial é libertar a humanidade do flagelo da guerra. Ao honrar esse compromisso, o homem busca o rumo da civilização; ao desonrá-lo, opta por sua natureza no estado puro, de selvageria e de animalidade. Se a ruptura desse sistema se repete em sociedades dominadas por déspotas, que mais se ajustam a considerações sobre a patologia criminal, a invasão do Iraque a exibe como decorrência da deliberação tomada em nações tidas como democráticas. As conseqüências imediatas dessa deliberação já são conhecidas. Às alegações de que o Iraque possuía armas de destruição em massa e de que a guerra era necessária e humana, seguiram-se as evidências do falso pretexto, da arbitrariedade da guerra e da entrega de Bagdá ao colapso e à anarquia. O que tudo isso significa?


De algum modo, os americanos realizarão a escolha que se projetará sobre o futuro do homem


Significa, entre outras coisas, que os responsáveis pela guerra insultaram a humanidade e a ameaçaram com a instauração do mais totalitário e violento dos regimes da sua história. Essa referência superlativa é justificada pelas razões de que ninguém concentrou, anteriormente, o poder militar dos Estados Unidos, ou formalmente o impôs ao mundo, como ocorreu com o manifesto da doutrina de segurança de Bush. O coração da matéria, nesse assunto, é o poder, sem contrastes e controle, de intervenção preventiva dos Estados Unidos. Indague-se aos cidadãos americanos se é esse o seu desígnio.
Embora se saiba que a liderança de Bush é apoiada por uma parte perturbadoramente significativa da sociedade que governa, os americanos, ainda assim, precisam dizer se desejam que a sua nação se situe à margem da lei e assuma, de uma vez, o comportamento de pária que Bush lhe imprimiu -mas um pária equipado com os meios de destruição e de morte. Os americanos podem admitir, ao contrário, que foram induzidos pela exploração do seu medo e pela manipulação da informação. Essas respostas são necessárias porque somente a força da opinião pública poderá conter a progressão desse governo na direção da dominação de outros povos e de seus recursos econômicos, pelo puro e simples exercício da violência.
Se essas respostas necessárias forem apresentadas, o mundo saberá se os americanos pensavam se no Iraque havia uma ameaça real ao seu país, ou se foram envolvidos no simulacro, organizado por seu presidente, para violar a Carta das Nações Unidas. Os americanos poderão confrontar-se, então, com a constatação de que o compromisso internacional, de que participam, foi desrespeitado e desonrado por seu governo desonesto, que assim o traiu, ao seu povo e à sua Constituição.
A nação americana não pode ser confundida com o seu governo. A força da sua história e da sua cultura afasta essa hipótese. Contudo a sua ação de intervenção em outros países sempre suscitou reações que, cedo ou tarde, encontrariam vias de expressão ativas e violentas. Se por essas vias passa o terror, esta é uma questão crucial apenas pela violência que suscita, e não por seu fundamento: os assassinatos praticados pelo terror não se diferenciam dos assassinatos oficiais do governo Bush, a despeito dos subterfúgios das regras da convivência entre povos e nações.
Não se trata de justificar o terror e a violência, mas de reconhecer o processo e as suas razões primárias. Entre essas razões está o unilateralismo estúpido e, quase sempre, covarde da política externa que atrai o perigo da destruição para o próprio território dos americanos e situa a sua sociedade no patamar da barbárie e do desrespeito aos valores da humanidade, levando a outra indagação: o que deu errado na América?
De algum modo, os americanos realizarão a escolha que se projetará sobre o futuro do homem. Eles não devem estar falando realmente de liberdade e democracia, pois as desejam para si e negam aos demais; ainda assim, podem perceber que o seu governo, ao semear o horror da guerra, faz com que a violência penetre no seu cotidiano e ameace também ao americano tranqüilo. A dicotomia do seu Estado, que alimenta a retórica da democracia ao mesmo tempo em que coage pela violência, é capaz de despertar reações cada vez mais tomadas pelo ódio, instintivas e ilegítimas como as ações que lhes deram causa. A relação entre esses fatos não poderá ser ignorada pelos americanos para sempre.

Samuel Mac Dowell de Figueiredo, 54, é advogado.


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