São Paulo, domingo, 11 de janeiro de 2004

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A sociedade totalitária

RICARDO SEITENFUS


O "fichamento" de turistas revela que a sociedade totalitária imaginada por George Orwell é hoje uma realidade patente

A aplicação de novas regras para o ingresso de brasileiros no território dos Estados Unidos não deixou nenhuma margem de manobra ao nosso governo: foi necessário aplicar medidas similares para os cidadãos norte-americanos que visitam o Brasil. A decisão brasileira decorre de três princípios fundamentais enumerados no artigo 1º da Constituição: os direitos de cidadania e de dignidade da pessoa humana, além da soberania nacional. Para aplicá-los, o Brasil recorreu a um dos elementos fundadores do direito internacional, o princípio da reciprocidade.
Com efeito, cada Estado define de maneira autônoma as condições de ingresso e de permanência de estrangeiros em seu território, natural exercício da soberania. Os arautos da globalização que anunciavam o desaparecimento das fronteiras políticas entre os Estados, a ponto de autores apontarem a sua "desterritorialização", são absolutamente desmentidos pela atual administração dos Estados Unidos.
É desnecessário demonstrar o recorrente e inconteste desprezo de Washington pelos princípios elementares do direito internacional. O único parâmetro que prevalece é o da aplicação dos atributos da soberania, sustentados no que lhes parece ser o seu interesse nacional. Trata-se do império da vontade unilateral do mais forte. Contudo, quando essas regras não possuem um alcance extraterritorial e dizem respeito unicamente aos bens e pessoas que se encontrem ou pretendam ingressar em sua jurisdição, os Estados Unidos agem dentro da mais estrita legalidade internacional. Assim, o ingresso de estrangeiros em território nacional não configura um direito, porque é apenas uma expectativa de direito.
Por conseguinte, a decisão de Washington de discriminar os estrangeiros, classificando-os em dois grupos distintos, ou seja, uma minoria (28 nacionalidades) que dispõe de direitos respeitados através do "Visa Waiver" e uma grande massa, de mais de 150 nacionalidades (nela incluídos os cidadãos brasileiros), sujeita a regras mais estritas, obedece a critérios em relação aos quais não cabe recurso jurisdicional. Contudo é impossível não refletir sobre a eleição dos cidadãos privilegiados. Veja-se, por exemplo, o caso dos nacionais de Brunei ou mesmo algumas nacionalidades da Europa Ocidental, onde se encontram, como é do conhecimento de todos os serviços secretos, muitos grupos com potencial capacidade terrorista.
Já no caso do Brasil, embora conforme aos direitos constitucional e internacional, a comentada decisão do juiz federal de Mato Grosso que institui a reciprocidade suscita problemas de natureza política e econômica. Ora, na medida em que o atual governo tem defendido o respeito a certos princípios na sua atuação externa, como ficou claro em sua atitude perante o conflito iraquiano, seria incompreensível para uma parte ponderável da opinião pública brasileira que adotasse postura distinta da que adotou, qual seja, a de respeito à decisão da Justiça. O que deveria chocar é que apenas o Brasil tenha tomado essa providência!
Claro está que o aumento das dificuldades para a livre circulação de pessoas provoca prejuízos econômicos, como demonstra a experiência recente dos Estados Unidos. Caso não surja rapidamente uma solução para o imbróglio, especula-se que a economia turística brasileira poderá sofrer consequências. Todavia, diante do respeito a direitos e princípios fundamentais, dito aspecto é questão menor que somente encontra eco em parte do jornalismo econômico e entre os prefeitos de cidades turísticas afeitos aos holofotes da mídia.
Finalmente, registre-se que a corajosa e solitária posição do governo brasileiro, de não impedir a defesa judicial dos direitos de nossos cidadãos, comporta um outro significado: o criminoso e abominável atentado de 11 de Setembro mudou o cenário internacional. Além das numerosas vítimas, o ato terrorista fez ressurgir a agenda securitária em detrimento da cooperação econômica. Acima de tudo, porém, impulsionou a administração dos Estados Unidos em direção a uma política de controle policialesco sem precedentes. O verdadeiro "fichamento" de simples turistas revela que a sociedade totalitária imaginada por George Orwell na obra "1984" é hoje, infelizmente, uma realidade patente.


Ricardo Antônio Silva Seitenfus, 55, doutor em relações internacionais pela Universidade de Genebra, é diretor da Faculdade de Direito de Santa Maria (RS). É autor de, entre outras obras, "Relações Internacionais" (editora Manole).


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