São Paulo, domingo, 11 de abril de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

A culpa feliz

RIO DE JANEIRO - Nos meus tempos de seminário, sempre que chegava a Páscoa, eu ficava impressionado com um hino composto por São Tomás de Aquino que era cantado, se não me engano, no Sábado de Aleluia. O chamado "Doutor Angélico" pode ser discutido como filósofo ou teólogo, mas como poeta, embora usando o latim corrompido da Idade Média, pode ser considerado como um dos mais perfeitos e um dos primeiros a usar a rima com a mesma precisão de Dante e Petrarca.
Nesse hino, o poeta teve a audácia de classificar como culpa feliz o pecado original do qual, segundo a doutrina cristã, nasceu toda a condição humana mortal e pecadora. "O felix culpa": "Oh culpa feliz que nos fez merecer tal e tanto redentor". Se o homem não tivesse provado os frutos do bem e do mal, não teria havido a redenção, estaríamos ainda no paraíso terrestre, sem morte e sem dor.
Na esteira de Tomás de Aquino, mas de forma oblíqua e até mesmo dissimulada, o mesmo raciocínio poderia ser estendido à Paixão e morte de Cristo, que o filme de Mel Gibson colocou agora em azeda discussão histórica, religiosa e sentimental.
Para consumar a redenção da humanidade diante de seu criador, era preciso que um cordeiro fosse imolado, seu sangue fosse derramado em abundância, tal como mostra o filme de Gibson. Discutir se a culpa do sacrifício de Cristo pertence aos judeus ou aos romanos é ocioso. Todos os atos e fatos ligados ao suplício da cruz e do Calvário faziam parte da redenção humana, daí a classificação poética de "feliz" a para culpa do homem que, pecando originalmente, tornou-se merecedor de tal e tanto redentor.
Não foram os judeus nem os romanos que supliciaram o Filho de Deus -segundo a doutrina cristã. Foi o homem coletivo, o homem comum que ao longo da história sempre dá um jeito de expressar a condição humana, que é imperfeita, violenta e recorrente. Daí a culpa -qualquer culpa- pode ser feliz.


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