São Paulo, quinta-feira, 11 de maio de 2006

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Constitucionalismo e opinião pública

FÁBIO WANDERLEY REIS

Cláudio Gonçalves Couto, cuja estima prezo e retribuo, discorda, em artigo de 2 de maio, de idéias que expressei em artigo aqui publicado em 26 de abril. Defende ele o voto aberto no Congresso, com base no princípio de que o parlamentar deve prestar contas dos seus atos.


Se dependesse do que temos visto como "opinião pública" desde o ano passado, o próprio Lula já teria talvez sido impedido


Cláudio Couto tem certamente a "opinião pública" do seu lado. Sem fazer-lhe a injúria de ver aí a razão de suas posições, isso aponta para algo relevante: meu artigo, que trata das relações entre voto e opinião pública, tem como objetivo principal o de introduzir matizes e tentar romper o farisaísmo autocomplacente do clima dominante quanto ao assunto, com o clamor difuso de que os parlamentares se submetam à "voz das ruas". É notável, de todo modo, que meu prezado crítico silencie por completo quanto às patologias que assinalo, do ponto de vista da democracia, na dinâmica da opinião pública. Junto a outros fatores, tais patologias não respaldam a adesão ao voto aberto como regra para as decisões do Congresso, ainda que talvez não seja o caso de excluí-lo de vez.
Cláudio Couto propõe que o voto aberto não implica o "mandato imperativo", mas adiante o associa, de forma inconsistente, com a "representação da vontade alheia" e com evitar a "irresponsabilidade". Cabe indagar quando o parlamentar estará sendo "responsável": quando ausculta o clamor difuso ao decidir (será que o clamor é unânime?) ou quando, por exemplo, consulta os interesses clientelísticos de seu "curral eleitoral" particular? Por que presumir que não se pode ter a "prestação de contas" na avaliação mais ampla da atuação do parlamentar? Realismo na análise do processo político é bom e tem faltado, sendo mesmo condição para que se construam instituições eficazes e estáveis. Mas, no caso em discussão, que vícios vamos destacar e buscar neutralizar na construção institucional? As propensões negativas dos parlamentares ou políticos, que todos xingam, ou os desvios patológicos e as deficiências a surgirem do lado do "público", que tende a ser santificado?
O tema se desdobra em assuntos complicados, para os quais o artigo de Cláudio Couto mostra pouca sensibilidade e cujo cerne é a oposição entre democracia direta e democracia constitucional. A primeira pode ser caracterizada pelo empenho de erigir em decisão revestida de autoridade, ou em política pública, aquilo que corresponde em cada momento ao ânimo majoritário (e talvez à maioria suposta, a "opinião pública"), com a conseqüência de que os direitos civis ou liberais não possam ser garantidos (como se sabe, eles não existiam na Atenas clássica). Já o constitucionalismo envolve a vigência de amarras legais e institucionais, em que regras básicas limitam o peso das maiorias cambiantes e da "opinião pública" e permitem preservar direitos estabelecidos. Não obstante o que pode haver de positivo (e também de problemático...) na experimentação em vários países com mecanismos de democracia direta, um ponto crucial no contraste dos dois modelos, em que a perspectiva de Cláudio Couto se revela especialmente frágil, é o do papel da Justiça. A revisão das decisões dos demais poderes por um Judiciário capaz de apreciar as normas relevantes com competência e isenção política é parte importante da tradição constitucionalista, embora possa ser difícil assegurar a realização adequada do ideal; mas Cláudio Couto vê aí um perigo "grave", já que "juízes não são eleitos"!
Isso remete ao tema recente, na literatura política (e de clara relevância no momento latino-americano), das "democracias iliberais", nas quais a importância exclusiva ou unilateral concedida à ocorrência de eleições pode comprometer o entendimento apropriado da diversidade de aspectos da operação de uma democracia efetiva. Esta pode exigir justamente que certas decisões sejam afastadas das esferas política e eleitoralmente mais sensíveis do governo. Se o Judiciário é aqui o exemplo clássico, pode-se lembrar também o debate corrente entre nós sobre a autonomia do Banco Central. Cabe desejar a "republicanização" dele, como pretendem alguns, e sujeitar suas políticas aos humores cambiantes de sucessivos governos legitimados pelo mandato popular? Ou, ao cabo, o interesse nacional como tal será melhor atendido com sua autonomia completa?
Voltando ao voto parlamentar, alguns têm argumentado que o impeachment de Collor teria sido mais difícil se o voto não fosse aberto. Isso é talvez certo. Mas nada acrescenta à legitimidade da decisão a respeito. E cabe ponderar que, se dependesse do que temos visto como "opinião pública" desde o ano passado, o próprio Lula já teria talvez sido impedido, com boas ou más razões. Seja como for, é bom que a democracia permita distinguir a "opinião pública" da manifestação da opinião privada e autêntica do eleitor. E dos seus representantes.

Fábio Wanderley Reis, 68, cientista político, doutor pela Universidade Harvard (EUA), é professor emérito da UFMG.


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