São Paulo, domingo, 11 de julho de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Democracia, Federação e República

AÉCIO NEVES

Ao iniciar suas memórias políticas ("Da Propaganda à Presidência"), Campos Salles credita à Inconfidência Mineira o primeiro projeto de descentralização do poder no Brasil. "O próprio federalismo, princípio básico sobre o qual o Manifesto Republicano de 1870 assentara os alicerces da futura República, encontra a sua filiação histórica na Inconfidência, donde veio descrevendo a sua difícil, mas segura, trajetória, até a fazer-se inscrever na sábia Constituição de 24 de fevereiro (de 1891)."
Mostra, em seguida, a aliança entre mineiros e paulistas nesse propósito: "Muito concorreu para favorecer estes intuitos (federalistas) a revolução das províncias de S. Paulo e Minas Gerais, em 1842".
Campos Salles atribui à derrota militar dos revolucionários o fortalecimento da ditadura imperial e a desmoralização das instituições políticas daquele tempo. "É então que mais se acentuam e se desenvolvem, em contínua e rápida progressão, a decadência dos costumes políticos e a perversão da moral social, cavando a ruína dos partidos."
O Manifesto Republicano se inicia com uma constatação: "No Brasil, antes ainda da idéia democrática, encarregou-se a natureza de estabelecer o princípio federativo". A descentralização do poder é condição indispensável à democracia. A essência do sistema está na proximidade entre o simples cidadão e o poder. Tanto mais o poder se distancia de sua vontade, menos democrático é. O primeiro ato das ditaduras é o de concentrar tudo, de eliminar a autonomia das cidades e dos Estados.
Esperava-se que a redemocratização do país, para a qual se tornaram decisivas a campanha das Diretas e a vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, significasse a imediata restauração do pacto de 1891. Mas infelizmente, conforme a sabedoria do povo, o uso do cachimbo faz a boca torta: sobreviveram os principais instrumentos centralizadores dos governos militares. Faltou-nos, aos constituintes de 1988, a necessária audácia para romper os grilhões da concentração do poder na tecnocracia, que sempre teve (e continua tendo) seu "bunker" no Banco Central -instituição criada pelo general-presidente Castello Branco.
Em 1965, aos Estados correspondia 35,1% da receita tributária nacional; hoje, essa participação não chega a 25%. Em contrapartida, a parte da União, que era de 59,5% em 1960, é hoje de 72,5%, conforme dados da Secretaria da Receita Federal. Os números variam, de uma fonte para outra, mas não alteram o resultado: concentraram-se os recursos tributários na União e, ao se concentrarem, concentrou-se o poder político de Brasília e diminuiu a autonomia administrativa e política dos Estados federados. Eles ficam privados de promover o desenvolvimento e resolver os seus problemas sociais.
O exame da história mostra que, quanto mais concentrado for o poder de uma nação, mais vulnerável ela se torna e, tanto mais descentralizado, mais blindada em sua independência. É da lógica elementar que união signifique a adesão independente a determinado projeto, sem perda da identidade de cada uma das partes. Sem isso, não haveria união, mas absorção, com o predomínio de uma vontade arbitrária qualquer sobre o conjunto. Talvez essa idéia explique o fato de os povos brasileiros que sempre defenderam a descentralização do poder serem os que mais se empenharam na idéia da Independência.


O exame da história mostra que, quanto mais concentrado for o poder de uma nação, mais vulnerável ela se torna
É sabido que a queda do Império se deu menos pela aspiração republicana propriamente dita e mais pela frustração dos federalistas, entre eles os dois homens públicos mais notáveis do período, Ruy Barbosa e Joaquim Nabuco. Quatro anos antes de proclamar-se a República, com a confessada intenção de salvar a Monarquia, o então deputado Joaquim Nabuco apresentou, em 14 de setembro de 1885, projeto de lei que convertia o Império em Federação, cuja aprovação a Coroa impediu.
Ao discursar, diante do Congresso Constituinte, em 91, Ruy seria mais explícito: "Não me fiz republicano, senão quando a evidência irrefragável dos acontecimentos me convenceu de que a monarquia se incrustara irredutivelmente na resistência à Federação. Esse "non possumus" dos partidos monárquicos foi seu erro fatal. A mais grave responsabilidade, a meu ver, dos que presidiram à administração do país, no derradeiro estádio do Império, está na oposição obcecada, inepta, criminosa de uns, na fraqueza imprevidente e egoística de outros, contra as aspirações federalistas da nação".
As palavras de Ruy são atualíssimas, na atual crise do sistema republicano. Os Estados federados não suportam, por mais tempo, o garrote fiscal e o domínio político da burocracia centralizadora. A atualização do pacto federativo, mediante amplo debate nacional, é o único caminho para a reconstrução republicana. Como diziam os antigos, "salus republica suprema lex est": a principal responsabilidade de uma República é a sua sobrevivência.
Tal como Nabuco e Ruy em seu tempo, devemos alertar para a necessidade do pacto federativo, hoje a caminho da revogação final, mediante a continuada concentração de receitas tributárias na União, a maior em toda a história republicana. A perda de autonomia financeira de Estados e municípios limita a iniciativa e a ação administrativa regional e aumenta, o que é extremamente grave, a dependência política dos entes federados para com o poder central.

Aécio Neves, 44, economista, é o governador do Estado de Minas Gerais. Foi deputado federal pelo PMDB-MG (1987-91) e pelo PSDB-MG (1991-95, 1995-99, 1999-2002).


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